Fanon pela construção de uma psicologia tão anticolonial quanto antimanicomial, ou… Antimanicomial porque anticolonial.

Qual a atualidade das discussões sobre raça e colonialidade num país que desenvolve sua identidade a partir de um mito de democracia racial? O que isso tem a ver com a Psicologia? Ou ainda… A Psicologia tem algo a ver com isso? É sempre bom lembrar que…

O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Brasília, 2005, p. 7).

Cada vez mais os debates sobre racismo e outras formas de opressão estruturais ocupam espaço dentro de universidades, redes sociais e meios de comunicação. No Brasil, pensadoras e pensadores como Lélia Gonzales, Clóvis Moura, Abdias Nascimento, Sueli Carneiro, Ailton Krenak, Neusa Santos Souza e Silvio Almeida – em outros países, W.E.B. du Bois, Frantz Fanon, Léopold Senghor, Angela Davis, Grada Kilomba, Bell Hooks e Achille Mbembe, colocam em questão o racismo e as lógicas coloniais que ainda reverberam no modelo de sociedade no qual vivemos e (ainda) sustentamos.

Destes, o pensador, psiquiatra e revolucionário Frantz Fanon (20 de julho de 1925, Fort-de-France, Martinica – 6 de dezembro de 1961, Bethesda, EUA) passou a ter crescente visibilidade no campo das discussões sobre racismo e saúde mental nos últimos anos. Que no mês de maio deste ano, quando pensarmos na história da Luta Antimanicomial brasileira, seu legado seja lembrado para que possamos refletir sobre a importância da luta por uma sociedade mais justa, livre de manicômios, de tratamentos desumanos, do racismo e de toda forma de opressão.

A obra de Fanon reverberou no pensamento de nomes importantes para a reforma psiquiátrica brasileira, como o italiano Franco Basaglia e os franceses Deleuze e Guattari. Basaglia e Basaglia (1966/2010), por exemplo, associam as diferentes facetas e lógicas do racismo, às lógicas que levam a criação dos manicômios, utilizando uma compreensão de exclusão bastante próxima à de Fanon para descrever o processo de enclausuramento do dito “doente mental”.

Compreender Fanon, nesse sentido, é também compreender de forma mais profunda conceitos e ideias que deram base para as políticas públicas de saúde mental, para o processo de reforma psiquiátrica e luta antimanicomial no Brasil, legado que precisa ser cada vez mais valorizado e visibilizado, já que por anos foi negligenciado ou colocado em segundo plano nestas discussões.

A escrita do presente texto é motivada pelo desejo de divulgar o pensamento do psiquiatra revolucionário, destacar aspectos da obra extremamente lúcida e qualificada de Deivison Faustino (FRANTZ FANON: um revolucionário particularmente negro) e despertar o interesse de colegas de profissão ou daquelas(es) que ainda não tiveram oportunidade de se aproximar do pensamento de Fanon, para pensar como ele ainda pode ser atual nas nossas discussões sobre racismo e saúde mental.

Poderíamos propor aqui estimular tal processo de reabilitação do doente mental por meio da tomada de consciência de ter sido considerado não só um monstro biológico, mas também um monstro social: de ter sido excluído enquanto incompreensível e recluído enquanto perigoso (Basaglia e Basaglia, 1966/2010, p.39).

Antes de abrir o dossiê, queremos dizer certas coisas. A análise que empreendemos é psicológica. No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de inferioridade após um duplo processo: — inicialmente econômico; — em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade. (Fanon, 1952/2008, p.28).

FRANTZ FANON: um revolucionário particularmente negro

Um marco na popularização do pensamento de Fanon no contexto brasileiro foi a publicação do ensaio de Deivison Faustino pela editora Ciclo Contínuo, FRANTZ FANON: um revolucionário particularmente negro, no ano de 2018. O autor, uma das referências brasileiras nos estudos do pensamento fanoniano, mais recentemente também lançou A disputa em torno de Frantz Fanon: a teoria e a política dos fanonismos contemporâneos, pela editora Intermeios, em 2020.

Em revolucionário particularmente negro, Deivison apresenta de forma ampla e elucidativa aspectos importantes da biografia de Fanon, assim como as transformações em seu pensamento de acordo com cada contexto de sua vida. Além disso, apresenta como os conceitos deste pensador influenciaram movimentos sociais, políticos, autoras e autores de diversos campos do saber e de diferentes bases teóricas.

No início do ensaio Deivison descreve sobre diferentes concepções acerca do desenvolvimento do pensamento de Fanon. Enquanto há autores que entendem que há uma divisão do pensamento entre um jovem Fanon, mais voltado a compreensão de aspectos existenciais e subjetivos, e de um Fanon evoluído, “que privilegia a práxis política como caminho para emancipação” (Faustino, 2018, p.14), (sendo a primeira fase representada por obras como Pele negra, Máscaras Brancas [1952-2008], a segunda por Condenados da Terra [1961-1968]), há outra possibilidade de compreensão, à qual Deivison se associa, e que aponta a existência de um eixo estruturante de toda a obra do psiquiatra. Este eixo é a sociogenia, “premissa que pressupõe um sociodiagnóstico que conceba a subjetividade sempre em relação com os seus determinantes históricos e sociais” (Faustino, 2018, p. 14-15). Deivison ainda destaca o trecho de Pele negra, máscaras brancas citado anteriormente (Fanon, 1952/2008, p.28) que comprova esta posição. Compreendendo que o processo de desalienação, de acordo com o autor, passa pela tomada de consciência de processos econômicos e sociais, é possível assumir que não há uma concepção iminentemente política acerca das questões subjetivas neste “jovem Fanon?”.

No capítulo Os nossos pais, os gauleses, Deivison dá visibilidade a outro aspecto central da obra de Fanon, das incidências da violência colonial no corpo colonizado: um ente tornado coisa, com sua humanidade subtraída. Deivison explica que Fanon cresce vivenciando tal violência, já que nasce em uma família de classe média no Fort-de-France na Martinica, à época colônia francesa no Caribe. Neste mesmo capítulo o autor explica como jovens negros nas Antilhas nascem, crescem e são educados para se identificarem com os exploradores, criando a imagem do homem branco civilizador, que leva a verdade àqueles considerados selvagens, o que resulta numa negação absoluta da humanidade dos nativos, que, como explica Deivison pode ser observada a partir do rechaço ao crioulo, língua falada por classes subalternizadas da Martinica.

Não à toa, como também aponta Deivison, uma parte privilegiada de Pele negra, máscaras brancas é dedicada a compreender as relações entre “o negro e a linguagem” (Fanon, 1952/2008, p.33), pensando na relação entre povos negros nativos de regiões colonizadas pela França, com a língua francesa, uma vez que “Falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização” (Fanon, 1952/2008, p.35). Ainda: a compreensão dos efeitos da linguagem é essencial em Fanon, já que o reconhecimento é também aspecto central de sua forma de pensar o sofrimento psíquico decorrente da violência colonial, e “falar é existir absolutamente para o outro” (Fanon, 1952/2008, p.35). Conforme explica Deivison, a socialização de Fanon foi atravessada por essa ideologia assimilacionista e pelo desencorajamento do uso do crioulo, em detrimento do uso (mais formal possível) do francês, já que não dominar esta língua não significa somente não compreender a norma culta, mas não ser “suficientemente educado, civilizado, humano… Branco!” (Faustino, 2018, p.25).

Em seu ensaio Deivison mostra a forma particular como Fanon se apropria de conceitos e compreensões de diferentes teorias, como o existencialismo, a fenomenologia, o marxismo, a tradição hegeliana e a psicanálise. Em alguns momentos, inclusive, fazendo interpretações profundamente problemáticas a partir do processo denominado por Freud de Complexo de Édipo, quando Deivison expõe limitações de âmbito heteronormativo e patriarcal dentro das construções teóricas do psiquiatra. Em outros momentos, no entanto, construindo importantes concepções que mais tarde reverberariam em importantes obras do pensamento crítico negro, revolucionário, anticolonial e decolonial.

No capítulo O II Congresso de Escritores e Artistas Negros, Deivison comenta sobre a recepção do pensamento de Fanon no congresso ocorrido em Roma no ano de 1959. Nesse contexto Fanon já possuía reconhecimento internacional e sua presença era de destaque entre as(os) participantes do evento, o que não muda o fato de que, como explica Deivison, sua perspectiva era dissonante de outras personalidades importantes naquele contexto. Enquanto haviam concepções de Negritude associadas ao retorno às crenças ou culturas tradicionais – formas essencialistas de “ser negro”, Fanon propunha um devir cultural, em movimento com as lutas de libertação pelo fim da exploração colonial, concomitante à “uma práxis política revolucionária, de transformação das condições concretas de existência.” (Faustino, 2018, p.100).

É importante pontuar que há diversas compreensões sobre tais questões dentro do amplo movimento denominado Negritude¹, e que a posição de Fanon não se trata de uma negação de aspectos culturais africanos e afro-diaspóricos, mas sim de uma crítica à busca de uma “essência negra” que não rompe com fetichismos e apenas inverte os “polos da hierarquia, passando a considerar como positivo aquilo que o colonialismo classificou como inferior” (Faustino, 2018, p.118).

Nos capítulos finais do livro, Deivison descreve o notável esforço de Fanon em, mesmo diante de um quadro grave de leucemia, concluir aquela que por muitas(os) é sua obra-prima: Os Condenados da Terra (publicado em 1961, ano do falecimento de Fanon). Em seus últimos dias de vida, conforme mostram trocas de cartas com amigos, Fanon não lamentava o fato de estar morrendo, mas o fato de “morrer de leucemia em Washington” (Faustino, 2018, p.122), quando poderia estar na luta de libertação com o povo argelino, processo no qual o psiquiatra teve importante papel político e intelectual.

Para fazer os encaminhamentos finais lembremos… Já no início de Pele negra, máscaras brancas Fanon nos avisa que a análise que ele empreende é psicológica. O que a perspectiva proposta por Fanon tem a dizer para nós, psicólogas e psicólogos, mais de sete décadas depois? Que independente do campo de atuação, é importante pensar os processos de saúde, doença, sofrimento e cura de forma não individualizante, mas diante de um campo social de possibilidades e determinações que são singularizadas por cada sujeito.

Além disso, com a ampliação dos campos de trabalho da Psicologia no âmbito das diferentes políticas públicas, torna-se cada dia mais importante pensar a profissão de forma diretamente ligada à garantia de direitos e à busca por modos de vida que possibilitem o fim das diferentes formas de desigualdades e opressões.

Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro, de Deivison Mendes Faustino, além de apresentar um panorama da vida e obra do importante intelectual nascido na Martinica, agencia o desejo de conhecer profundamente a complexidade de seu pensamento. Isso é importante, pois é também a partir da leitura de intelectuais negras e negros de países periféricos e que colocam em questão as lógicas coloniais violentas que se perpetuam e atualizam de forma secular, que sensibilizamos nossa escuta e intervenções em um país como o Brasil, onde o racismo é estrutural, mas sistematicamente negado.

*******Ps: essa é a versão ampliada de um texto escrito por mim, apoiado por colegas da Comissão Étnico-Racial do CRP-08, publicado na edição 135 da Revista Contato.


¹ Para mais informações: Munanga, K. (1990). Negritude afro-brasileira: perspectivas e dificuldades. Revista De Antropologia33, 109-117. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.1990.111217; BERND, Zilá. O que é Negritude. São Paulo: Brasiliense, 1988

REFERÊNCIAS

BASAGLIA, Franco; BASAGLIA, Franca Ongaro. Um problema de psiquiatria institucional: a exclusão como categoria sociopsiquiátrica. In: 2010 (org.). Franco Basaglia: escritos selecionados. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. p. 7-331.

Código de Ética Profissional do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia, Brasília, agosto de 2005.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008.

FAUSTINO, Deivison Mendes. Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2018.

Foto em destaque: Reprodução/ Brasil de Fato

João Henrique Santos Souza, CRP 08/28624 – Psicólogo residente em Saúde da Família e membro da Comissão Étnico-Racial do Conselho Regional de Psicologia do Paraná.
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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