Felicidade guerreira

Cenário permite julgamento e condenação sumários de pretos e pardos em cargo de comando

Já se perguntou se você é… racista?

Indago porque pessoas negras costumam ouvir com indesejável frequência perguntas iniciadas com um “Você é… (três pontinhos)” se estiverem em cargo de chefia. Pode parecer exagero, mas um negro reconhecido pelo que faz, em posição de destaque, ou desfrutando de alguma qualidade de vida ainda é
motivo de espanto.

A relação de perguntas indesejáveis iniciadas com o fatídico “Você é…” que já ouvi inclui coisas como “você é… a chefe?”; “…a dona da casa?”; “…a palestrante?”; “…a cliente deste horário”; “…moradora do Plano Piloto?”.

A cada passo adiante, minha “listinha” cresce. Várias vezes fico tentada a replicar: “E você, é racista ou só idiota mesmo?” Mas, até agora, a civilidade tem me impedido.

Fato é que grande parte das mulheres e dos homens pretas e pretos é obrigada a despender enorme energia para manter um mínimo de sanidade mental diante de um cotidiano racista.

São muitas as “pessoas do bem” que reagem “bem mal” a um preto que “rompe a bolha” e acessa certas oportunidades. É como se uma espécie de “presunção de subalternidade” associasse automaticamente os afrodescendentes a alguém sem valor ou qualificação, suspeito, que veio ao mundo para servir. Quem não se enquadra no estereótipo é lido como “socialmente deslocado” ou suscita dúvidas sobre capacidade e merecimento.

Esse é o cenário que leva uma jovem atriz negra a ser tratada como serviçal num restaurante da zona sul do RJ. Que faz com que negros sejam costumeiramente abordados com pedidos de ajuda sobre o preço ou localização de produtos enquanto fazem as próprias compras. Que permite o julgamento e condenação sumários de pretos e pardos em cargo de comando —independentemente da posição de vítima ou de algoz.

Sim, é possível que haja os “sem noção” que não se dão conta do que estão fazendo. Mas a maioria simplesmente não se importa com o que classifica de “mi-mi-mi”. Como diz a sentença incrustada na calçada do Museu de Arte do Rio: “A história do negro é uma felicidade guerreira”.


Ana Cristina Rosa – Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública)

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