Feminismo ocidental nunca questionou privilégios de brancas, diz ativista

De acordo com Françoise Vergès, a pandemia, embora agrave as desigualdades, não mudará o modo como mulheres brancas se aproveitam da exploração do trabalho doméstico de mulheres que pertencem a minorias.

A cientista política, historiadora, ativista e especialista em estudos pós-coloniais francesa lança agora no Brasil seu mais recente livro, “Um Feminismo Decolonial”, no qual aborda movimentos feministas antirracistas, anticapitalistas e anti-imperialistas, em contraste ao feminismo branco europeu, chamado de civilizatório, que se quer universal e acredita poder salvar as mulheres de outros tons de pele do obscurantismo.

O termo decolonial, principal conceito do livro, faz referência ao esforço de tornar pensamentos e ações livres do legado das diversas colonizações, e se diferencia, na tradução ao português, de descolonial, que se refere aos processos históricos de desligamento das metrópoles e ex-colônias.

Vergès, de uma família de militantes comunistas de origens francesa e vietnamita, cresceu na ilha da Reunião, departamento francês no oceano Índico próximo à África, estudou nos Estados Unidos, lecionou no Reino Unido e sucedeu a escritora Maryse Condé como presidente do Comitê Nacional pela Memória e História da Escravidão francês. Em entrevista, ela fala sobre as mudanças no feminismo e os efeitos da pandemia sobre as mulheres.

O feminismo europeu, branco, burguês, civilizatório perdeu sua hegemonia. Ele conseguiu, nos anos 1960 e 1970, impor sua narrativa e a ideia de que existia apenas um feminismo, o seu. O que é uma mentira.

As mulheres racializadas sempre lutaram. Jornais, sindicatos —de faxineiras, camponesas, operárias— e militantes, no Sul ou nas comunidades racializadas do Norte, se fizeram ouvir, mas o feminismo civilizatório conseguiu dominar por um tempo.

Sempre existiram feminismos que não se dedicam apenas à igualdade entre mulheres e homens, mas que formulam as questões de raça, classe, idade, sexualidades.

Havia então uma hegemonia no feminismo?

Ao ler a história do feminismo, acredita-se que só as mulheres europeias entenderam a libertação das mulheres. As feministas europeias fazem de sua história a universal, sendo que é local.

O feminismo não pertence às mulheres brancas. Mas o feminismo ocidental nunca se questionou sobre os privilégios que são dados às brancas, que repousam sobre o racismo. Ele quer fazer crer que estava protegido como que por milagre das ideologias e das práticas racistas que se perpetuam por séculos em favor de seus países.

Quando as mulheres europeias, por exemplo, não tinham o direito ao divórcio, a estudar ou exercer determinadas profissões, tinham o direito de serem proprietárias de homens e mulheres escravizados, e o tinham porque são brancas, a cor é então mais importante que seu gênero.

O que a senhora pensa sobre o MeToo?

Primeiramente, foi uma mulher afro-americana, Tarana Burke, que lançou o movimento, em 2017, para jovens negras vítimas de violência sexual. Nas mãos das feministas brancas, rapidamente virou individualista, reforçando histórias individuais, sendo que as violências machistas são estruturais, inseparáveis das estruturas raciais de poder e de dominação.

Se o MeToo quer combater violências, deve reconhecer a dimensão estrutural, as ligações entre essa brutalidade e os regimes de dominação econômica, cultural e social. Lutar contra as violências machistas é lutar contra violências que tocam os seres humanos, a terra, o solo, as árvores, os animais, os rios, os mares para aumentar o lucro de poucos.

E qual a importância do feminismo decolonial?

Esse enfraquecimento do feminismo civilizatório é graças ao trabalho das feministas decoloniais, que jogam luz sobre as traições e as cumplicidades —apoio às guerras imperialistas, islamofobia, negrofobia, transfobia, ataque às trabalhadoras do sexo.

Escutamos mais claramente as vozes dos feminismos decoloniais, as imensas manifestações no Brasil, no Chile, no México, na Argentina, em que as manifestantes cruzam seus ataques aos feminicídios à defesa do direito dos autóctones à terra e contra o neoliberalismo. Quando elas dizem que o violador é o Estado, o juiz, o policial, você, isso é formidável.

Os feminismos decoloniais são mais fortes hoje porque entramos numa nova etapa de decolonização, em que atacamos a colonização do poder, o racismo estrutural, o capitalismo racial. Não são feminismos que buscam um acordo com o poder e reformar o Estado, porque sabem que o Estado está a serviço do patriarcado e do capitalismo racial.

Como a pandemia atinge as mulheres?

O aumento da pauperização resultante das políticas de confinamento vão atingir de maneira mais brutal as mulheres racializadas do Norte e as do sul global, que serão as primeiras demitidas, privadas de direitos, precarizadas e vulnerabilizadas. Além disso, o capitalismo digital, que encontrou no confinamento a ocasião dos sonhos para se fortalecer, está longe de ser neutro, são homens brancos que concebem os algoritmos.

Vimos também que são faxineiras, enfermeiras, caixas que estão na linha de frente, e que o maior número de mortos está nas comunidades negras.

Com o isolamento, mulheres têm de lidar com o trabalho doméstico sem faxineiras, isso evidencia o racismo?

Claro! Mas o confinamento também mostra que a casa não é um refúgio, que é um lugar perigoso para mulheres e crianças. Os feminicídios se dão na maior parte das vezes nos lares. O lar é uma invenção do Estado para manter o patriarcado, o isolamento e para reforçar o individualismo.

Mas o isolamento pode levar a uma conscientização quanto às desigualdades entre as mulheres?

Essas feministas [civilizatórias] se beneficiam demais da exploração. Imagine todo o conforto que tiraram disso. Graças à exploração, elas têm tempo para manter um corpo em forma e saudável, se educar, e comprar roupas baratas costuradas por mulheres de Bangladesh, Vietnã, México.

As feministas civilizatórias podem ficar falando sobre direitos das mulheres porque mulheres limpam as universidades, os parlamentos e as casas onde elas discursam. Quando elas falam de igualdade, elas nunca atacam o capitalismo racial.

Elas vão reivindicar talvez uma melhor divisão de tarefas, ainda assim é uma reivindicação do feminismo burguês. E, se depois da pandemia elas perderem alguns de seus privilégios, isso não vai fazer com que queiram a revolução. Essas mulheres, que são por vezes vítimas do machismo de seus pais, companheiros, filhos e irmãos, são também suas maiores cúmplices, são as guardiãs do machismo e do patriarcado branco racista do qual se beneficiam.

Como pensar a proibição do uso do véu na França agora, com a obrigatoriedade do uso de máscaras em locais públicos?

A obrigação do uso de máscaras mostra bem que a interdição do véu era ideológica e islamofóbica. Mas não é isso que vai acabar com a perseguição a mulheres muçulmanas que usam véu. Foram as feministas francesas que, no fim dos anos 1980, militaram ativamente para a proibição do véu. Elas queriam civilizar as muçulmanas, que viam como submissas, e salvá-las do patriarcado. Essas feministas não são apenas cúmplices, elas estão na origem das leis racistas e sexistas.

UM FEMINISMO DECOLONIAL
  • Preço R$ 54,90 (144 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autor Françoise Vergès
  • Editora Ubu
  • Tradutoras Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo

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