Filantropia negra se volta para a inclusão social contra o racismo persistente e estrutural

Enviado por / FonteO Globo, por Suzana Correa

Sócio de uma rede de clínicas populares no Rio, o cardiologista Rafael Bispo conhece bem as dificuldades enfrentadas por estudantes negros para se tornarem médicos no Brasil. São poucos os profissionais negros como ele em hospitais e consultórios.

Na juventude, ele passou por cima de preconceitos e desestímulos, pegou dinheiro emprestado para pagar o vestibular e conciliou os estudos com trabalho. Hoje, quer que jovens estudantes negros interessados nessa carreira tenham melhores oportunidades.

Para tornar isso realidade, resolveu agir. Uniu-se a outro empresário negro, Raiam Santos, para financiar dez bolsas de estudo para ajudar jovens negros aprovados em cursos de medicina a seguirem adiante até a formatura com menos percalços.

Bispo é um dos empreendedores negros engajados em um movimento iniciado nos Estados Unidos em agosto de 2011, que tornou este o Mês da Filantropia Negra e cresce no Brasil: investir em ações concretas para a inclusão social de outros pretos e pardos.

Este ano, a comunidade de filantropos negros no Brasil foca em iniciativas como a de Bispo e Santos, voltadas para a área da saúde.

Em países com alta desigualdade racial como EUA e Brasil, os negros são os mais atingidos pela Covid-19. Por outro lado, mesmo sendo maioria na população (56%), negros são apenas 1,8% dos médicos no Brasil, apontou uma pesquisa da Fiocruz.

— Não temos muitos médicos negros, e isso leva meninos e meninas a pensarem que medicina, ou qualquer cargo alto, não é para eles. Faltam referências. É importante verem que também existem negros em posição de liderança, ajudando outras pessoas — diz Bispo. — Mas ainda estamos longe. Ainda entram em minhas clínicas e perguntam se eu sou o médico.

Ludmila Araújo, estudante de medicina de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, ganha apoio financeiro para se dedicar totalmente à faculdade, sem precisar mais trabalhar como babá para ajudar nos custos dos estudos Foto: Acervo pessoal

Entre os universitários selecionados pelo projeto idealizado pelo médico está Ludmila Araújo, de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Com 22 anos e aluna do nono período de medicina da Unigranrio, ela tinha que conciliar a faculdade com “bicos” como o de babá para custear o curso.

Agora, com uma ajuda de R$ 700 mensais pode se dedicar integralmente aos estudos.

— Agora, ainda tenho como mentores excelentes profissionais e ampliei minha visão como empreendedora. Aprendi sobre a necessidade do contato, do foco no que apresento ao público e da necessidade de cativar o paciente — conta a universitária.

Ações buscam mudança

O Mês da Filantropia Negra mobiliza hoje cerca de 17 milhões de pessoas em eventos pelo mundo. No Brasil, benfeitores se esforçam para demonstrar que filantropia não é caridade, mas investimento em mudanças sociais necessárias e concretas, como a sentida por Ludmila.

Criado no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio, Raiam Santos conta que decidiu contribuir para o projeto para que outros jovens tenham uma oportunidade como a que teve aos 15 anos: uma bolsa para estudar economia e relações internacionais numa universidade americana.

O único pedido que ele ouviu do doador em troca: que um dia fizesse por outros a mesma coisa. Líder de uma empresa de marketing digital, ele viu no projeto de Bispo essa oportunidade:

— Eu me identifiquei com a história dele e juntamos energias para retribuir e ajudar esses alunos.,

O empresário Raiam Santos, líder de uma empresa de marketing digital, financia bolsas de estudos para jovens negros estudantes de medicina na tentativa de retribuir uma oportunidade que teve ainda na adolescência: trocar o Complexo do Alemão, no Rio, pela educação numa universidade americana Foto: Divulgação / .

O projeto persegue o ideal do movimento de empreendedores negros para a promoção de igualdade racial: mudar a realidade dos afrodescendentes. Há outros a cargo de entidades especializadas, como o Fundo Baobá para Equidade Racial, único no Brasil dedicado exclusivamente ao tema.

Desde o início da pandemia, o Baobá já destinou R$ 905 mil para projetos focados em grupos de risco da Covid-19 em comunidades carentes, como confecção de máscaras, que geram renda para costureiras negras.

— A pandemia trouxe uma vivência exacerbada das desigualdades históricas e do racismo estrutural. Atuar captando fundos contra o racismo, num país que tem dificuldade em reconhecê-lo como operante na definição de todo o tecido social, é desafiador. Mas a população negra é uma potência, e preservar suas vidas é preservar um ativo de transformação — afirma Fernanda Lopes, diretora do fundo.

Ela explica que a relação dos negros brasileiros com a filantropia remete às irmandades criadas no período colonial escravista, que permitiam o custeio de despesas como a compra de cartas de alforria. Hoje, o foco é atacar as causas do racismo persistente.

Desigualdade cresce

Em 2019, o desemprego entre negros, segundo o IBGE, foi de 26,1%, mais que o dobro da média nacional (11%). A expectativa é que a pandemia alargue o abismo. O Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), no Rio, auxilia empresas a repensarem o racismo institucional com ações afirmativas e capacitação para abrirem oportunidades internamente para profissionais negros.

O movimento ganha força desde os protestos antirracistas iniciados nos EUA após o assassinato do cidadão negro George Floyd por um policial branco. No Brasil, flagrantes de discriminação racial acirraram o debate.

— Este ano trouxe discussões raciais que precisavam ser intensificadas. Queremos continuar com iniciativas propositivas e inovadoras que “racializem” os debates e aproximem negros do mercado de trabalho — diz Heloise da Costa, responsável pela área de empregabilidade do ID_BR.

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