Filosofia africana: a luta pela razão e uma cosmovisão para proteger todas as formas de vida

 Em suas Lições sobre a Filosofia da História, Hegel diz que a África não tem interesse histórico próprio e é um local em que os homens “vivem na barbárie e na selvageria, sem se ministrar nenhum ingrediente da civilização”. A África, para Hegel, não é um lugar habitado pela História nem pela Razão (“os africanos são crianças eternas, envoltos na negrura da noite sem a luz da história consciente”, diz ainda). Tratada hoje como um preconceito datado e anacrônico, a visão hegeliana sobre a relação do continente africano com a razão permanece viva na prática filosófica do presente, avalia o professor de Filosofia Jean Bosco Kakozi, natural da República do Congo, que esteve em Porto Alegre nesta última semana para fazer uma conferência na 6a Semana da África na UFRGS.

por Marco Weissheimer no Sul 21

Doutor em Filosofia e Ciências Humanas, Kakozi tem pós-doutorado em Direito (na área de direitos humanos) pela Unisinos e atualmente é professor da Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila), em Foz do Iguaçu. Além disso, é um pesquisador da filosofia africana (Ubuntu) e latino-americana, da escravidão africana, movimentos sociais afrodescendentes, racismo e exclusão social, e relações inter-étnicas entre indígenas e afrodescendentes da América Latina e Caribe. O tema de sua conferencia na UFRGS foi “Ubuntu e Ukama: uma cosmovisão africana de inclusão e interdependência vital”.

Em entrevista ao Sul21, Jean Bosco Kakozi falou sobre os conceitos de Ubuntu e Ukama, fundadores de uma filosofia africana que, ao contrário do antropocentrismo que marca a tradição ocidental, caminha na direção de uma cosmovisão biocêntrica, que está sempre voltada para fortalecer, cuidar, gerar e transmitir a vida, respeitando todos os seres vivos, humanos e não humanos e tratando os ancestrais como elo de ligação entre os vivos, os mortos e os que ainda não nasceram. Lembrando a passagem de Hegel, ele fala por que o problema da Filosofia na África é o problema da luta pela razão, uma luta que se aplica também aos povos indígenas e outros povos excluídos pela civilização ocidental moderna na África, na América Latina e na Ásia.

“A filosofia ocidental excluiu muitos povos do mundo do uso desse atributo eminentemente humano que é a razão”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sul21: O que é a filosofia africana hoje e qual sua relação com a tradição da filosofia ocidental?

Jean Bosco Kakozi: O filósofo sul-africano Mogobe Ramose publicou, em 1999, um pequeno livro para falar sobre a filosofia africana a partir da noção de ubuntu. Em um dos capítulos desse livro, ele diz que o problema da Filosofia na África é o problema da luta pela razão. Por que ele fala de luta pela razão? A filosofia ocidental excluiu muitos povos do mundo do uso desse atributo eminentemente humano que é a razão. Foram excluídos povos indígenas, africanos e asiáticos. Hegel, na Fenomenologia do Espírito ou nas Lições sobre a Filosofia da História, diz que a África é uma região que não é de muito interesse para a humanidade pois é uma região que está fora da História. A luz da razão ou o espírito da História, como ele diz, nasceu no Oriente, na Ásia, e foi caminhando para o Oeste, na direção da Europa, sem passar pela África. O Egito, para ele, não teria nada a ver com a África, sendo uma espécie de preâmbulo da Europa. A História, diz ainda Hegel, é racional. São seres racionais que fazem a História. Então, aqueles que não usam a razão não estão na História.

Mogobe Ramose diz que a Filosofia na África tem uma tarefa e uma responsabilidade muito importante que é lutar pela razão. A Filosofia, assinala, deve começar também por esse problema, dizendo que a razão está presente na África e que as pessoas usam a razão. Todo o ser humano usa a razão. Ramose fala desse desafio e de sua relação com o ubuntu.

Sul21: O que é o ubuntu, exatamente? É uma corrente de pensamento, um conceito?

Jean Bosco Kakozi: É mais do que isso. Para Ramose e outros filósofos e pensadores africanos, ele é a base da filosofia africana, compreendendo uma ontologia, uma ética e uma epistemologia. Desmond Tutu, outro pensador africano, que hoje é arcebispo emérito, diz que o ubuntu é a cosmovisão africana, algo mais abrangente que a filosofia, envolvendo também elementos de antropologia, sociologia, política e economia. É uma forma de enxergar o mundo, algo equivalente ao weltanschauung alemão. Nós vemos o mundo hoje a partir de uma cosmovisão ocidental. Essa é uma forma de conhecer, pensar e enxergar o mundo. A ela está associada uma maneira de fazer as coisas. Se mudarmos essa cosmovisão, essa maneira de pensar, sentir e conhecer o mundo, a maneira de trabalhar, de pesquisar e de conhecer também mudará.

O ubuntu está baseado na ideia de humanidade. É um termo que se encontra em várias línguas banto. Trata-se de duas palavras em uma, a saber: “ubu” e “ntu”. A primeira está associada a uma ontologia, aos fundamentos da realidade, e a segunda a uma epistemologia, à possibilidade de conhecer tudo o que existe. Em uma primeira acepção, portanto, o ubuntu é uma ontologia e uma epistemologia, expressando o conjunto da realidade e de como podemos conhecê-la. Mas ele também significa a pessoa tomada em abstrato. A palavra “bantu” significa pessoa, mas quando queremos falar da pessoa de modo abstrato, usamos “ubuntu”, que nos leva a pensar a noção de humanidade, como conjunto das pessoas. Então, a primeira acepção de ubuntu é o conjunto da realidade, de tudo o que existe e que pode ser conhecido, enquanto a segunda é o conjunto das pessoas, a humanidade. E os humanos vivem sempre relacionados com outras entidades cósmicas não humanas.

Nós temos essa acepção também nas línguas europeias e greco-latinas. Nestas línguas também se fala da humanidade como um valor e não só como o conjunto dos humanos. Nós falamos que fulano é humano, tem humanidade. Isso quer dizer que fulano, Francisco ou Pedro, é uma pessoa que tem valores, é compassivo, empático e solidário com as pessoas, com o próximo.

Sul21: Qual é a origem temporal dessa cosmovisão africana? É possível datá-la no tempo?

“A maioria dos egípcios antigos era composta por negros. O eurocentrismo sempre quer branquear o Egito”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Jean Bosco Kakozi: Essa é uma pergunta interessante. O ubuntu como um fenômeno político e acadêmico é recente, mas como uma vivência das comunidades africanas ela existe desde sempre. Eu tenho interesse em pesquisar isso. Essa linha de tempo chega até os egípcios. Agora, há uma corrente de pesquisa que está estudando a influência dos egípcios antigos na África negra. A hipótese que está sendo pesquisada é que as línguas e culturas da África subsaariana têm a ver com o Egito antigo. A maioria dos egípcios antigos era composta por negros. O eurocentrismo sempre quer branquear o Egito. Isso é uma mentira. Eu acredito que é possível rastrear alguns elementos de vivência do ubuntu até o Egito antigo. Se partirmos da hipótese de que as culturas e línguas africanas subsaarianas estão relacionadas ao Egito antigo, não seria uma loucura fazer estabelecer essa relação.

Sul21: E, enquanto fenômeno político, está ligado à luta anticolonialista na África?

Jean Bosco Kakozi: Sim. Em 1948, o National Party, partido da extrema-direita branca racista, ganhou a eleição na África do Sul. Quando esse partido chega ao poder, começa a decretar leis segregacionistas. Já havia essa segregação antes, desde a chegada dos primeiros colonizadores holandeses no século XVII e depois com os ingleses, no século XIX. Mas, em 1948, a segregação partiu do próprio Estado nas mais diferentes áreas: educação, moradia, transportes e assim por diante. Aí começaram também as respostas dos africanos contra essas leis. O ápice dos protestos contra as leis segregacionistas ocorre nos anos 70, quando ocorre o massacre de Soweto. Neste massacre, a polícia matou estudantes que estavam se manifestando contra uma lei que obrigava os africanos a fazer toda a educação, desde o ensino fundamental, na língua africâner.

No Zimbabwe, país vizinho da África do Sul, também ocorreram neste período vários movimentos de protesto que também recorreram a elementos do ubuntu para lutar contra a desumanização da colonização. Assim, pouco a pouco, o ubuntu vai sendo levado para a área política. O ápice desse processo ocorre nos anos 90, sobretudo em 1993, quando Mandela é libertado do presídio onde ficou 27 anos. Neste período, a palavra “ubuntu” entra pela primeira vez na história política da África do Sul em um texto muito relevante, que é a Constituição de transição que levará o país para as eleições em 1994. Ela entra no epílogo dessa Constituição de transição, onde se diz que, para lidar contra as mazelas da discriminação e da segregação, não havia lugar para vingança ou retaliação, mas sim para “ubuntu”, que devia prevalecer. No entanto, na Constituição de 1996, essa palavra desaparece.

A presença dessa palavra na Constituição de transição abre espaço para o seu uso na área política. Hoje ela é muito usada também na área acadêmica, na filosofia moral, ética, bioética, política, sociologia, biologia e física. É importante assinalar ainda que o ubuntu também foi levado para a Comissão da Verdade e Reconciliação, criada logo após Mandela assumir o governo. Ele defendeu que, para pensar uma África do Sul pós-apartheid, o novo governo deveria criar essa comissão. Desmond Tutu, que presidiu a comissão, escreveu um livro intitulado “No future without forgiveness” (Não há futuro sem perdão), onde ele mostra como o ubuntu ajudou no processo de reconciliação e de reparação nesta justiça transitória.

Sul21: Como foi esse processo?

“Na África do Sul não foi feita uma justiça vingativa dos vencedores”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Jean Bosco Kakozi: Na África do Sul não foi feita uma justiça vingativa dos vencedores, porque não houve vencedor. Não foi feito algo como o Tribunal de Nurenberg, após o fim da Segunda Guerra, onde Estados Unidos, Inglaterra, França e seus aliados puniram os alemães. Eles castigaram os alemães e foram embora. Desmond Tutu falava: nós vamos castigá-los e ir embora pra onde? As vítimas e agressores terão que seguir convivendo no mesmo país. Por isso, defendeu, precisamos fazer uma justiça humanizante, uma justiça que humanize tanto as vítimas quanto os perpetradores de crimes. Ele falava aí, desde a perspectiva do ubuntu. A ideia é que, só alguém que se desumanizou, poderia cometer crimes e atrocidades como as que ocorreram no apartheid segregacionista. Somos uma nação de feridos, disse ele.

Houve uma anistia condicionada. Desmond Tutu falava de uma terceira via, com perdão, mas sem esquecimento. O perpetrador tinha que confessar seus crimes, pedir perdão para a comunidade e para a vítima. Era um momento de catarse nacional, que era transmitido ao vivo pela televisão pública. Algumas vítimas não queriam reparação e só pediam uma sepultura digna para a pessoa que tinham perdido. Só queriam saber onde tinha sido enterrada e que ganhasse uma sepultura digna. A ideia era ter uma reparação, mas também uma reconciliação. Muitos criticaram esse processo que não foi perfeito e teve problemas, é verdade. Há vítimas que seguem esperando a reparação material até hoje. Na Comissão também se falou que aqueles que haviam se apropriado de terras de nativos iriam devolver essas terras e haveria um processo de reforma agrária. Isso também ficou com uma tarefa pendente por parte do Estado sulafricano. A maioria das terras férteis seguiu nas mãos dos fazendeiros brancos.

Sul21: Quais seriam as principais diferenças entre essa cosmovisão africana e a cosmovisão ocidental? Qual o tamanho e a natureza dessas diferenças?

Jean Bosco Kakozi: Creio que há uma grande diferença na perspectiva de como tratar o outro, na visão de alteridade. A filosofia ocidental moderna está baseada na ideia do cogito, de Descartes. Eu penso, logo existo. O ego pensante é condição de possibilidade da existência de uma pessoa. Essa ideia do “eu” é chave na filosofia moderna ocidental. Toda a cultura ocidental pode ser entendida a partir dessa visão. A cosmovisão africana é diferente. Ela diz: eu sou porque pertenço (a uma comunidade). Desmond Tutu diz: eu sou porque somos. Há uma forte relação entre o nós e o eu. Há alguns pensadores mais categóricos que afirmam que, na cosmovisão africana, é o nós que prevalece. Isso não implica excluir o eu. Há algumas criticas que afirmam que essa visão representaria uma tirania da comunidade sobre o indivíduo, um coletivismo comunismo. Mas não é assim.

O “eu” encontra seus interesses dentro do “nós”. O “nós” significa vida em comunidade com a presença de vários “eu”. A vontade de uma só pessoa, porém, não deve prevalecer, mas sim a vontade da comunidade. Essa valorização da comunidade não aparece somente na África. Há um filósofo canadense, Charles Taylor, que também trabalha a questão do comunitarismo, de uma perspectiva ocidental. Os alemães também valorizam muito essa ideia de comunidade. O pensador senegalês Léopold Sédar Senghor disse que, embora a cultura ocidental considere o comunitarismo, o indivíduo acaba prevalecendo em relação ao “nós”. Na África, mesmo existindo também a ideia de indivíduo, o “nós” acaba prevalecendo. Aliás, nesta visão, o indivíduo que não cabe dentro de um “nós” representa a morte social. Se você não se considera pertencente a alguma comunidade, você não existe. A pobreza extrema não é ter dinheiro ou riquezas, mas sim não pertencer a nenhuma comunidade.

“Os filósofos profissionais das nossas academias são muito eurocêntricos”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sul21: Na tua experiência como professor de Filosofia, como é o contato com seus colegas que pesquisam e trabalham com a filosofia ocidental? Há um espaço de abertura e possibilidade de diálogo com a cosmovisão africana do ubuntu com a qual você trabalha?

Jean Bosco Kakozi: Na minha experiência, infelizmente ainda existe uma distância. Eu estudei em uma das universidades importantes da América Latina, a Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), chamada de a máxima casa dos estudos. Mesmo sendo uma universidade importante, uma das melhores da América Latina, na Faculdade de Filosofia eles quase não trabalham com esses temas relacionados a outras cosmovisões. Eles acabam sendo trabalhados nas pós-graduações dos Estudos Latino-americanos ou, às vezes, na Antropologia. Os filósofos profissionais das nossas academias são muito eurocêntricos.

No México, existe um Instituto de Pesquisas Filosóficas, onde quase todo mundo segue a tradição da filosofia analítica, uma linha muito rígida que, de certo modo, quer fazer da filosofia quase uma ciência exata. Os pesquisadores desse instituto não trabalham com questões que são impostergáveis para a América Latina, como tratar de enxergar e pensar essa realidade a partir das cosmovisões que foram excluídas e marginalizadas. Mesmo assim, elas seguem existindo. O México possui uma comunidade muito rica de povos indígenas. Se os nossos filósofos enxergassem e conhecessem essas cosmovisões poderiam realizar pesquisas maravilhosas. Mas preferem seguir publicando sobre Hegel, Heidegger, Habermas, Deleuze e assim por diante. As cosmovisões africanas, caribenhas e indígenas, subalternizadas, não tem vez.

Sul21: Aquela formulação de Hegel sobre onde a razão está presente e onde não está parece seguir bastante vida dentro da Filosofia…

Jean Bosco Kakozi: Sim, infelizmente. Se você apresentar um projeto de pesquisa sobre Kant, Heidegger, Habermas ou Rawls será muito bem recebido. Mas se você apresentar um projeto sobre um problema como a identidade da filosofia política na América Latina ou o problema da libertação da América Latina como um problema filosófico ouvirá que eles não são temas para a Filosofia e será encaminhado para a disciplina de Estudos Latino-americanos.

Sul21: Você veio a Porto Alegre para fazer uma conferencia na 6a Semana da África na UFRGS sobre “Ubuntu e Ukama: uma cosmovisão africana de inclusão e interdependência vital”. Até aqui, você falou sobre o Ubuntu. O que é Ukama e como se relaciona com o Ubuntu?

“Temos uma cosmovisão biocêntrica, que está sempre voltada para fortalecer, cuidar, gerar e transmitir a vida”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Jean Bosco Kakozi: Ukama, um termo da língua xona (grupo de línguas africanas faladas nas províncias de Manica, Tete e Sofala de Moçambique, na metade norte do Zimbabwe e no leste da Zâmbia), é um conceito que vem do verbo “kama” que, em português, significa ordenhar, tirar o leite de uma vaca ou de uma cabra. Desse verbo saiu um substantivo que é “rama” e que significa uma pessoa que eu considero muito próxima. A ideia é que essa pessoa se alimentou do mesmo leite materno que eu. Há um vínculo afetivo muito forte aí. “Ukama” é a abstração de “kama” ou “rama” , expressando uma relação de irmandade, uma relação afetiva forte.

Ukama está conectado com Ubuntu, com a ideia de humanidade e de relação com os outros seres. Ukama traz para Ubuntu essa afetividade que é elevada também a outro patamar, que é a afetividade com a natureza. O “rama” nos liga com nossos ancestrais, que são muito importantes na cosmovisão africana. Nas religiões africanas, os ancestrais são uma figura central. Eles são a ligação entre os vivos, os mortos e os ainda não nascidos, sendo representados por totens não humanos. Pode ser um pássaro, uma árvore, são elementos da natureza. Nós também os consideramos como “rama”, como nossos irmãos que beberam o mesmo leite materno que nós.

Temos aí uma relação intrínseca entre Ubuntu e Ukama, que tem a ver com o que chamo de uma cosmovisão biocêntrica, que está sempre voltada para fortalecer, cuidar, gerar e transmitir a vida. O papel dos ancestrais é trabalhar com os vivos, ajudando-os a seguir vivos e estes, por sua vez, seguem lembrando deles e os celebrando, numa relação de solidariedade afetiva e anamnésica. Eles já se foram mas sempre são lembrados, o que implica uma prática permanente da memória. Nós trazemos a memória deles com a gente e essa memória é uma responsabilidade. Herdamos a vida deles, a terra, a língua, as tradições, a cultura, tudo. É uma memória afetiva que tem uma tarefa: nos tornar sólidos, fazer todo o possível para a nossa etnia, o nosso grupo, não desaparecer.

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