Fiz um aborto e quero respeito

Ler sobre aborto é sempre muito delicado para mim. É estar relembrando algo muito pessoal e doloroso. Sim, vocês já entenderam, eu fiz um aborto. Quando tinha 18 anos. Mas ao contrário do que podem pensar não foi falta de informação. Li Capricho desde os 12, quando ganhei de presente de aniversário a assinatura. Sabia tudo sobre sexo, prevenção e camisinha (naquela época, só em teoria). Mas a prática é diferente, não é mesmo? Não engravidei por estupidez ou ignorância, foi falta de camisinha mesmo. E foi uma vez só, que azar seria engravidar na única vez em que se faz sem! É, realmente foi.

Não posso dizer que foi a decisão certa a ser tomada na época. Hoje, aos 31 anos, enxergo que decidir por um aborto nunca é a melhor opção. Às vezes pode ser a única possível, só que sempre haverão marcas. Apesar de saber que hoje não faria novamente, na época foi o menos pior. Porém, a tristeza que vem com isso é algo que somente quem já passou pela situação pode falar. Ninguém mais. E o pior é que geralmente a gente se cala. Foi como disse uma tia minha: “a gente faz e não toca mais no assunto”. Fica assim, proibido, censurado. Mas por dentro, a consciência, a tristeza, a culpa, tudo te corrói.

Foi difícil superar tudo, quando se é nova a cabeça vira um turbilhão de pensamentos desconexos. Aliás, acredito que seja algo nunca totalmente superado. Ainda hoje me pego me perguntando “e se”. No entanto, pedi para a Lola postar esse texto para mostrar como é comum, corriqueiro e próximo um aborto. De qualquer um. Não é só rico que pode optar nem só pobre que morre. É a colega da faculdade, a prima, a moça da recepção, são todas nós, mudas, que não tivemos a chance de decidir quando engravidar, por azar, por falta de informação, por que a pílula falhou… É tão fácil ficar grávida quando não se quer!

Irrita-me ver pessoas discutindo legalizar ou não aborto como quem discute o sexo dos anjos. Essa sociedade hipócrita e míope, cheia de moral de cuecas que pretende decidir o que é melhor para o embrião e para a mulher. Não percebe que, independente de ser legalizado, o aborto acontece, mulheres morrem, outras vivem em silêncio com sua decisão. Nunca é fácil, por mais certa que a mulher esteja de que não quer um filho naquele momento. E a gente não pode dizer nada, sempre tem alguém pra te apontar. Poucas e próximas pessoas sabem que fiz um, e para algumas só contei para que elas pensassem em suas próprias situações. Mas lá vem igreja, senado, moralistas, querendo dizer se é vida ou não, se pode ou não pode… Matérias em jornais e televisão mostram o pior lado, com seu dedo acusador: “se você fizer, vai acontecer assim também”. Não é abordando desta maneira que vai se diminuir o aborto. Tudo vai continuar existindo. E parabéns a você aí, que critica mulheres que abortaram em blogs, que defende ferreamente a vida, nossa, que valoroso! Deve deitar à noite com a sensação de dever cumprido, não é? Desculpe, mas isso não ajuda em p*rra nenhuma.

A mulher que faz aborto não usa isso como método contraceptivo. Depois do meu aborto, fui a uma ginecologista (eu nunca tinha ido antes!), que viu que estava tudo bem, receitou-me anticoncepcionais e sempre tomei direitinho. Fiquei tão paranóica que usava pílula e camisinha e por muito tempo não me relacionei com ninguém. Aliás, meu namoro desandou, o pai da criança não conseguiu segurar a barra comigo, eu olhava para ele e não queria mais tê-lo por perto. Mas não guardo rancor, pelo contrário, ele ainda é meu amigo e quero-o muito bem. Era tão jovem quanto eu, também ficou perdido.

Por muito tempo, acreditei que, quando quisesse ter filhos, não conseguiria tê-los. Ou eu os perderia espontaneamente, ou eles viriam sem saúde. Uma maneira punitiva e bem autodestrutiva de pensar. Hoje sou kardecista e sei a visão que se tem do aborto. Não é boa, mas acredito em perdão. Rezo muito por esse espírito que não pode nascer e peço que me perdoe. Foi assim que consegui encontrar paz de espírito. Agora, sou mãe de uma garotinha linda de um ano, esperta, perfeita, saudável e cheia de vida. Ela é a minha vida, por ela tento ser uma pessoa melhor a cada dia. Considero-a um milagre e penso que se existe um Deus justo, ele me perdoou ao enviar sob minha responsabilidade um espírito tão belo e inteligente como ela.

Quem faz aborto não quer pedras nem flores. Queremos respeito. À nossa decisão, ao nosso corpo, à nossa dor.

Voltei. Duas boas notícias fresquinhas: Ontem no Senado houve uma plenária da Frente Nacional contra a Criminalizacão das Mulheres e pela Legalização do Aborto no Brasil. O momento para reverter o retrocesso trazido pelo segundo turno das últimas eleições é agora. Há uma tentativa de se formar uma frente ampla, que não fique restrita aos movimentos feministas, para discutir vários assuntos referentes aos direitos reprodutivos da mulher. A luta não é apenas para legalizar o aborto até os três primeiros meses de gestação, mas também para aumentar a oferta de métodos concepcionais para todas as mulheres, melhorar o atendimento às grávidas, ampliar o investimento em creches, oferecer a pílula do dia seguinte nos SUS e nas Delegacias da Mulher, e por aí vai.

A outra boa notícia é que quem é católica e fez um aborto (um pecado que a igreja pune com a excomunhão) tem até amanhã para viajar para Madri. O próprio papa estará presente em uma das cabines montadas para ouvir confissões e conceder perdões no Dia Mundial da Juventude. Mas essa promoção especial para salvar sua alma é só até amanhã. Corra!

Publico este email de uma leitora querida que, por motivos óbvios (aborto ainda é crime aqui, apesar de ser legalizado em todos os países ricos, aqueles que vivemos querendo copiar) permanecerá anônimo. Essa moça tem uma visão diferente dos outros dois relatos que publiquei (de mulheres que abortaram e não sentiram culpa, porque não existe uma só reação para todas). O que elas têm em comum é que todas exigem respeito. Suponho que é o que tod@s queremos. Volto no final

 

Fonte: Escreva Lola Escreva

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