Um jardim de sonhos e lutas para quase 100 mil margaridas

Se o capitalismo condena a humanidade ao que de pior ela pode produzir para o conjunto da sociedade, as mulheres são as que mais sofrem com as consequências. Sobretudo as negras, as pobres, as indígenas, as camponesas, as mães solteiras, as lésbicas, as que já abortaram.

A covardia da organização social patriarcal há séculos as condena ao racismo, além de atos de violência machista que partem dos homens e das relações do capital em suas mais variadas formas – com assassinatos, espancamentos, estupros, violações, liberdade subjugada.

Mas a resistência surge na mesma medida e nesta terça (16) e quarta-feira (17) cerca de 100 mil mulheres camponesas, trabalhadoras urbanas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, pescadoras e feministas estiveram em Brasília (DF) para a Marcha das Margaridas.

Enquanto a ponta da marcha, que acontece a cada quatro anos, chegava às portas do Congresso Nacional, na Esplanada dos Ministérios (DF), o final dela ainda estava no Parque da Cidade – que durante 48 horas se tornou a Cidade das Margaridas.

As mulheres tomaram de assalto as principais artérias do centro de poder do país por “Desenvolvimento sustentável com justiça, autonomia, igualdade e liberdade”, mote da marcha. Histórias de lutas, regadas a lágrimas e risos, compuseram a grande marcha.

A organização da marcha foi da Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura (Contag).

Margarida ressurgida

A marcha traz a memória de mulheres que morreram na defesa de seus direitos numa luta antissistêmica. Entre elas, Margarida Alves; durante 12 anos ela presidiu o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alagoa Grande, estado da Paraíba.

Quebrou a lógica de que apenas homens podiam ocupar tal posto – ainda muito presente no movimento sindical brasileiro. Margarida travou intensa luta contra a exploração, pelos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, contra o analfabetismo e pela reforma agrária.

Acabou brutalmente assassinada pelos usineiros da Paraíba em 12 de agosto de 1983. Maria da Soledade presidiu o mesmo sindicato três anos depois, em 1986. Militou ao lado de Margarida e hoje se emociona ao se dizer margarida ao lado de tantas outras.

“Com essa marcha e nesse tempo todo de luta tivemos grandes conquistas, mas tem muito ainda para melhorar”, diz. Maria enfrentou o machismo e a violência não só como sindicalista e nas batalhas do campo. Repentista, enfrentou o preconceito de recintos que até então só cabiam homens.

Maria começou no repente com 19 anos e hoje está com 69: “São 50 anos cantando repente, fazendo essa poesia e resistindo como mulher. Acabei me acostumando a enfrentar o sertão, os homens e a luta dos trabalhadores e trabalhadoras do campo”.

Margaridas indígenas

Airy Gavião veio de Marabá, uma das principais cidades do Pará (PA). “É uma grande dificuldade para chegar aqui. Dependendo da aldeia, são cinco dias de barco mais a viagem de ônibus”, conta. No entanto, Airy defende que a participação das mulheres indígenas deve ocorrer em todas as lutas das mulheres brasileiras.

“As indígenas sofrem com as consequências de tudo aquilo que aflige a mulher no campo. Por isso acho importante se inserir, fazer com que ouçam nossa voz, nossa cultura”, afirma.

Na Cidade das Margaridas, mulheres indígenas de todo o país se manifestaram. Povos indígenas sofrem com grandes empreendimentos, tais como a Usina de Belo Monte, no Pará, e a transposição do rio São Francisco. Tais impactos interferem no modo de viver dos índios.

Para Alexandra Pataxó, de Porto Seguro, Bahia, a luta pela terra é parte também da luta para a construção de uma vida melhor para as mulheres indígenas: “Então temos de superar as dificuldades e nos inserirmos mais na articulação das mulheres para colocarmos nossas necessidades”.

Em sua segunda marcha, Jomara Aracy, do povo Dessana, integrante da Articulação das Mulheres Brasileiras, frisa o papel transformador da mulher como essencial para um Brasil livre do capital. Para ela, só assim, num país de outra dimensão política e ideológica, é que as mulheres poderão ser livres de tudo aquilo que as oprime.

Margaridas contra grandes empreendimentos

A marcha trouxe também a Brasília a luta das mulheres contra os grandes empreendimentos. Rosa Pessoa é do Movimento de Mulheres de Altamira (PA). Ela e suas companheiras carregavam bandeiras contra a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. “Não há benefício nenhum com a usina, só coisas ruins para o nosso povo”, diz.

Em sua análise, Rosa avalia que além dos danos ao meio ambiente, povos indígenas, ribeirinhos e pescadores, Belo Monte atenta diretamente contra as mulheres. “Vemos um aumento grande de exploração sexual de mulheres e a tendência é piorar com o decorrer da construção da usina”, afirma.

Rosa avalia que não há desenvolvimento, mas retrocesso. Lembra do grande problema habitacional gerado apenas pelo fantasma da usina: a especulação imobiliária gerou o aumento de sem-tetos e de graves abismos sociais. Parte de Altamira será alagada e a outra ficará sob intenso caos social com o aumento populacional – estimado em 120 mil indivíduos.

“A Norte Energia não dá soluções ou cumpre as condicionantes. Não queremos a usina porque os impactos trarão grandes problemas. Estamos aqui contra Belo Monte”, encerra Rosa erguendo o mais alto que pode a bandeira símbolo do movimento contra a construção da usina.

O grito contra outro grande empreendimento, a transposição do rio São Francisco, partia de Cristina Nascimento através de um megafone. Ligada ao Fórum de Mulheres de Pernambuco, ela acredita “que a transposição afeta populações originárias que são arrancadas de suas terras como se arranca uma planta do chão pela raiz”.

Cristina defende que a questão se trata de desrespeitar a ancestralidade de indígenas e quilombolas, um crime irreparável que fortalece questões estruturantes do capital, tais como o racismo, o preconceito, o machismo, a compreensão patriarcal da sociedade.

“Porque estamos falando de um modelo estruturado. Por isso é central combater a transposição e reivindicar o direito a sustentabilidade”, explica. Na esteira, Cristina defende que está a luta das mulheres em mandar no próprio corpo e nos rumos da vida.

Ela faz parte do grupo feminista de tetro de rua Loucas de Pedra Lilás. Com sede em Recife, as meninas (jovens, adultas e idosas) atuam no combate ao machismo e na defesa do feminismo com peças criativas ligadas à educação e conscientização dos direitos humanos – e de prazer – da mulher. Já se apresentaram em países da América Latina e do mundo. Na Cidade das Margaridas e durante a marcha, o grupo realizou performances e esquetes teatrais além de carregar uma imensa margarida.

Margaridas resistentes

De bandeira em punho e pés firmes na marcha, Maria das Neves ou Maria das Águas, como é mais conhecida, procurava algum repórter para falar sobre sua vida, sobre as companheiras mortas, sobre como é o dia a dia das mulheres pescadoras artesanais do país. Queria gritar para além da marcha.

Maria das Águas vive em Lagoa do Carro, agreste de Pernambuco. Ao lado dela são mais cinco mil pescadoras artesanais no Nordeste. Juntas ajudam a abastecer em 70% o país de pescado, seja nos rios, lagos, barragens ou em alto mar. Maria aprendeu a pescar aos sete anos – está com 55, apesar de o RG dizer 52.

“Toda vida morei em Lagoa do Carro. O que aconteceu foi que construíram uma barragem e o lugar em que morávamos ficou alagado, inclusive onde minha mãe plantava. Para nos dar de comer ela aprendeu a pescar na lagoa da própria barragem e me ensinou”, conta.

O tempo passou, as barragens continuam a ser erguidas nos rincões de um Brasil escondido e Maria das Águas é hoje representante do Movimento Nacional dos Pescadores e Pescadoras – além de ser da Articulação das Mulheres Pescadoras.

Ela encontra na organização política e ideológica formas de combater os ataques que as mulheres pescadoras sofrem, apesar da morte espreitar as ações de resistência ao latifúndio que privatiza as águas amparado pelos grandes empreendimentos do governo. Na semana anterior a marcha, uma companheira de Maria foi assassinada na Paraíba.

“Latifundiários nos expulsam dos rios e as grandes empresas jogam nas águas produtos químicos que matam ou contaminam os peixes. A privatização das águas é tamanha que chegam a colocar cercas elétricas dentro dos rios para nós não entrarmos sob risco de morte”, indigna-se.

Maria das Águas afirma que os grandes empreendimentos são hoje os principais responsáveis pelos aterros nos mangues, causando graves desequilíbrios ambientais, além de grande parcela do esgoto que polui rios e praias.

“Meu sonho é o mesmo das mulheres de 1857, lá de Chicago, que foram assassinadas. Quero um mundo livre da opressão, com as águas limpas e sem latifúndio. Vim aqui para a marcha a troco dessa luta”, enfatiza.

Por essas horas a marcha já se acumulava nos jardins do Congresso Nacional. A cor lilás predominava num dia de céu de brigadeiro e margaridas levantadas da terra.

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