FMI e as mulheres: para além da Maria da Penha

Professor da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas

Por:  Pedro Vieira Abramovay

Christine Lagarde, após ser a primeira mulher a comandar a economia francesa, é designada como a primeira a assumir a direção do FMI. Esse é um fato importante para a discussão sobre desigualdade de gênero no Brasil e no mundo. A carreira vitoriosa de Lagarde — e seu caráter excepcional — pode colocar luz nos dois pontos mais sensíveis do tema de gênero no Brasil: a desigualdade no trabalho e na política.

A discussão de políticas públicas específicas para a mulher não é novidade no Brasil e tem se aprofundado, sobretudo depois da Constituição de 1988, que acabou com as desigualdades jurídicas entre mulheres e homens. Mas é necessário se promover uma mudança de foco na discussão.

A mobilização da agenda nacional nesta questão tem sido a violência contra a mulher. Não há dúvidas de que essa é uma bandeira importante e houve avanços na desnaturalização da ideia de que o homem pode dispor do corpo da mulher.

Entretanto, há uma armadilha em torno dessa pauta. Aceitar que a mulher deve ser protegida é fundamental, mas a aceitação não rompe com o papel simbólico da mulher como sexo frágil, vítima que deve ser cuidada. Essa pauta é aceita sem dificuldades pelos espaços simbólicos de dominação masculina, pois não ameaça a estrutura dessa relação.

Reconhecendo o importante valor da luta do movimento feminista que conseguiu conquistas indiscutíveis na área da prevenção da violência, deve-se aproveitar vitórias simbólicas, como a primeira mulher na Presidência do Brasil ou a escolha de uma mulher para a direção do FMI, para enfrentar a estrutura da hegemonia masculina. E para isso é necessário discutir com profundidade o problema da desigualdade de gêneros nos espaços político e de trabalho, áreas nas quais a desigualdade de gênero torna-se mais gritante.

Na política, o Brasil tem um dos índices mais baixos do mundo (mantido nas últimas eleições) de mulheres no parlamento. A Câmara dos Deputados possui apenas 8% de deputadas, índice vergonhoso, que nos coloca atrás do Irã ou do Afeganistão.

No mundo do trabalho, mulheres e homens com a mesma formação têm salários diferentes e a ocupação de cargos de chefia por mulheres é expressivamente mais baixa. Pesquisa divulgada pelo Dieese aponta que o salário das mulheres no Brasil equivale a 76% dos salários dos homens. Entre as mulheres com nível superior, essa diferença é ainda mais grave: elas recebem 64% do que ganham os homens.

Apesar de o problema ser grave, esses temas têm menos visibilidade e geram uma mobilização política mais baixa do que o tema da violência, por exemplo. Isso se verifica pelos poucos projetos de lei sobre o assunto ou pelo baixíssimo índice de judicialização dessas demandas. Talvez porque esses temas afetam mais frontalmente o status quo de hegemonia masculina.

Há propostas que buscam modificar o quadro atual. Na política, uma solução seria o cumprimento da lei de cotas de candidatas (com a não aceitação pela Justiça de listas com índice de mulheres candidatas inferior ao da lei) ou, no caso de se aprovar a lista fechada, a alternância na lista (num modelo próximo à exitosa solução argentina: lá há mais de 1/3 de mulheres no parlamento).

Para lidar com a desigualdade no mundo do trabalho, a Secretaria de Políticas para as Mulheres e o Ministério da Justiça elaboraram, em 2009, um projeto de lei que foi apresentado como substitutivo ao PLS 25/09, da senadora Serys Slhessarenko, e é bom ponto de partida. O projeto propõe a criação de uma Comissão Interna Pró-Igualdade dentro de empresas de médio e grande porte. Funcionaria nos moldes das já conhecidas Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (Cipas) e teria por função realizar diagnósticos sobre a questão de gênero na empresa; propor um plano para a igualdade no trabalho, além de combater o assédio e esclarecer sobre a discriminação de gênero. O problema é tão invisível para a sociedade que o simples fato de obrigar a empresa a conhecer e publicar os seus dados internos sobre a desigualdade de gênero provocaria uma reação positiva.

Independentemente de quais as agendas concretas escolhidas, o Brasil deve aprofundar a mobilização social em torno de temas que enfrentem de forma estrutural a desigualdade de gênero no país. Após a consolidação da luta contra a violência, é imprescindível que o país coloque como tema central a superação das desigualdades de gênero nos espaços políticos e no mundo do trabalho.

 

Fonte: Lista Racial

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