Geledés – Como surgiu a ideia de fazer um filme sobre as experiências de mulheres pretas ressignificando as rotas originais do tráfico de escravos itinerantes através de países africanos?
Venho fazendo este trabalho desde 2009, quando desenhei a primeira rota de retorno que se cumpriu em 2012, após uma longa batalha por recursos. Nesta primeira jornada, levei as sacerdotisas de vodum da Bahia que à época estavam, e até hoje estão, à frente das mais importantes casas de Jeje-Mahi do Brasil, dentre elas o Terreiro do Bogum, uma casa cuja fundação é anterior a 1835, matriz do culto Jeje Mahi, e que foi representada por sua vodunoon, Naandojhi Índia. Esta jornada foi ao Benim e visitamos mais de dez cidades beninenses. O registro desta jornada é o curta metragem Merê, um filme premiado que inaugurou minha carreira de cineasta. A palavra escolhida para dar nome ao filme pertence ao vocabulário do culto jeje e significa “mulher” para pessoas iniciadas no culto. Foi nesta jornada, lá em2012, que iniciamos nossa aproximação com o Benim, com o firme propósito de fazer laços com o país a partir da luta política de mulheres negras de lá e de cá do Brasil.
Geledés – Qual foi seu critério de escolha dessas mulheres e dos países a serem visitados?
O primeiro critério foi reverenciar quem veio antes de mim, com trabalho e coragem, e que fez um caminho para que eu pudesse existir enquanto mulher negra, de vodum, sapatão e artista. Pensei nas velhas como uma forma de dizer obrigada a cada uma delas que sacudiu o Brasil e botou em pé as pautas raciais e de gênero. Assim, decidi levar pelo menos duas mais velhas que pudessem representar a luta de mulheres negras e suas vitórias em diferentes setores. Mulheres da velha escola da militância negra, mulheres cujas vidas estivessem dedicadas a fabricar liberdade para o povo negro, sobretudo para as mulheres negras.
As outras foram escolhidas pelo caminho que o filme percorreu e meu encontro com o trabalho e a jornada de cada uma delas – importante ressaltar que Mulheres Negras em Rotas de Liberdade nasce em 2012 quando estive pela primeira vez diante da Porta do Não Retorno, em Ouidah. Era a minha primeira vez pisando em África e eu decidi que iria voltar muitas vezes e que não voltaria sozinha. A Mirtes é uma escolha especial dentre as mais jovens. Eu queria que o cinema que faço, e que dei o nome de ‘cinema de cozinha’, pudesse de alguma forma abraçar a causa que é de Mirtes e a de todas nós. Eu queria que no meu lugar de militante e cineasta, meu trabalho pudesse fazer ecoar o grito de Mirtes. Queria levá-la ao que chamo de ” lugar do crime” que muita gente conhece como “Porta do Não Retorno”. A meu ver o racismo que matou nosso menino Miguel começou naquela travessia maldita, que como bem nos disse Dona Sueli Carneiro: “nós não vamos esquecer e não vamos deixar que eles esqueçam”.
Geledés – Há um movimento revelador no documentário que faz com que essas mulheres pretas contrariem a predição da Porta do Não Retorno, em Gorée, no Senegal. O que significa essa contrarreação para a população negra e para essas mulheres, em especial?
Sim. Nós extirpamos a maldição do “não retorno”, materializada na porta da Casa dos Escravos em Gorée e em outros portais de não retorno existentes no continente africano. Fizemos isso não apenas ao fazer essa viagem ao continente. Fizemos isso com nossos corpos adentrando uma porta que para nossos antepassados foi apenas de saída.
Essas portas de não retorno são um ponto crucial quando falamos do massacre que fabricou a diáspora africana no mundo. Dona Sueli nos fez entender que precisávamos como ato ancestral e político construir uma “ponte” para fabricarmos este retorno por nossa própria conta e risco. Um retorno político, espiritual, em memória daqueles que nunca puderam retornar e que agora retornavam através de nós. E assim fizemos!
Dona Sueli Carneiro nos revelou e fez entender que deveríamos insurgir contra essa sentença de “não retorno”, retornando. Entramos pela porta que ninguém, até onde sabemos, ousou entrar. Inclusive, porque a porta do não retorno de Gorée tem sua frente para o mar, sobre um muro de concreto com um abismo de uns dois metros e meio de profundidade. Dali, a única ponte que existia era a de saída para os negreiros. Como diretora, entendi a missão que ela me deu e mais velho a gente respeita e obedece. (risos)
A meu pedido, então, a nossa equipe de produção do Senegal passou a madrugada construindo uma ponte de madeira para pudéssemos entrar por aquela porta, que até então era somente de saída. E assim fizemos. A ponte ficou pronta no meio da madrugada. No dia seguinte, por volta das 6h da manhã, antes da entrada dos turistas, em um momento particular onde a casa dos escravos estava aberta somente para a nossa equipe, algo só nosso, entramos, enfileiradas. Todas as personagens (do filme), uma a uma, seguiram as mais velhas que foram nos guiando. Na sequência, a equipe do filme também pôde adentrar em Gorée pela porta que agora já não é mais de “não retorno “, afinal nós retornamos por ela.
Geledés – De que maneira o filme refaz os laços ancestrais e culturais em uma recomposição da afrodiáspora?
Enquanto artista meu plano sempre foi político. Sempre foi um movimento radical a partir da arte, em nossa defesa, da nossa vida e pleno direito.
Em primeira instância, o filme refaz esses laços dizendo de forma inequívoca ao Estado brasileiro e aos países africanos, que nossos ancestrais que fizeram a travessia maldita nos porões dos navios negreiros não morreram. Eles estão vivos em nós, e sim, nós retornaremos à nossa casa África tantas vezes quanto quisermos e Orixá nos permita. A sanha da colonização não nos fez sucumbir e dizer isso através das vozes de mulheres negras da arte e da política, a meu ver, é uma forma de refazer laços reconhecendo as feridas do passado para avançarmos a um futuro de dignidade aos descendentes daquelas pessoas que fizeram a travessia e também das que ficaram no continente africano.
Geledés – Como foi o evento na Universidade de Obafemi Awolowo, em Ile-Ifé, na Nigéria, em que Sueli Carneiro e Conceição Evaristo se reuniram com acadêmicos?
Fomos recebidas por autoridades acadêmicas e as nossas mais velhas, Conceição e Sueli, falaram para estudantes da universidade. Muitos deles com especial interesse, pois têm na produção intelectual de ambas uma base teórica importante de suas formações acadêmicas.
Foi um momento histórico, pois essa é uma das universidades mais importantes do continente africano, um grande centro de produção de conhecimento. Além de ser a universidade onde Abdias do Nascimento recebeu o título de Honoris Causa.
Tivemos a oportunidade de ouvir a fala de Sueli Carneiro e de Conceição Evaristo traduzidas em língua iorubá, um fato que nos restitui a possibilidade de comunicação direta com a África, sem a interdição da língua colonizadora que tanto nos vilipendiou.
Na ocasião, a fala das duas deixou marcado o nosso desejo de reconexão com o continente, sem esquecer as feridas do passado, mas construindo no presente um futuro de união e desenvolvimento entre os dois lados do Atlântico e isso só pode ser construído se as mulheres negras estiverem à frente deste movimento.
Geledés – Sueli Carneiro afirmou que seu documentário foi responsável por seu reconhecimento como cidadã do Benim, a primeira brasileira a receber esse título em uma cerimônia que contou com a alta cúpula do governo beninense. Conte-nos como isso aconteceu.
Como militante negra que sou aprendi a ouvir minhas mais velhas, a prestar atenção no que elas estão dizendo. Há obviamente dentro de mim o compromisso inquebrantável com as pautas do movimento negro, em especial com o movimento de mulheres negras. Como cineasta, devo este filme a Ogum e a confiança que Sueli Carneiro e Conceição Evaristo tiveram no meu trabalho.
Elas seguraram na minha mão desde 2015, 2016, quando fiz a elas o convite de participarem deste filme. Naquele momento eu não tinha um tostão sequer. Também não tínhamos “contrato” algum. Mas eu tinha a palavra e a confiança delas. E foi com isso que abri caminhos para este filme, amparada pela confiança que elas me deram. Assim fui em busca dos recursos e dos ” sim(s)” que eu precisava para fazer acontecer este projeto.
Eu não queria apenas fazer um filme. Para mim, uma mulher negra que tem ambições maiores, queria e estava decidida a realizar o sonho delas. E querendo saber dos sonhos delas eu fui a São Paulo encontrá-las e entrevistá-las com este propósito de saber qual era o grande sonho de Sueli Carneiro. E ela me disse textualmente (eu tenho essa entrevista gravada, inclusive): “meu sonho, antes de morrer, é ter a cidadania de um país africano. Meu sonho é mostrar que nós temos um lugar para onde regressar, se assim nós quisermos. Meu sonho é ser reconhecida como cidadã no continente onde nossos antepassados foram arrancados de maneira tão brutal e perversa”.
Saí dessa entrevista decidida a fazer tudo que Ogum me permitisse para realizar o sonho de Sueli. Essa decisão foi a forma de colocar meu trabalho como um instrumento de reconhecimento a tudo que Sueli fez por nós, pelo povo brasileiro e pela luta antirracista no mundo. Minha decisão também foi por saber que este sonho de Sueli Carneiro é o sonho da diáspora negra no Brasil e no mundo.
Tomada a decisão, me dediquei juntamente com minha produtora executiva, Flávia Santana, minha produtora de ouro e diamantes, a encontrar os caminhos possíveis. Foram mais de oito meses de trabalho absolutamente no escuro. Meses depois de darmos início às nossas buscas e entender por qual caminho poderíamos seguir, o presidente do Benim, Patrice Tolon, esteve no Brasil e fez o anúncio oficial da política de reconhecimento de cidadania. Mas não havia protocolos para este processo. Pedimos, então, ajuda ao Ministério da Cultura do Brasil, mas nunca tivemos resposta.
No Itamaraty, apesar da boa vontade da diplomata responsável pelo setor de Cultura do escritório de São Paulo, Talita Halliday, não tivemos uma resposta efetiva sobre os caminhos. Inclusive, cruzamos com um diplomata homem branco, que foi bastante grosseiro conosco na reunião onde pedíamos ajuda para dialogar com o governo do Benim. Eu dizia pra minha equipe: vamos fazer isso acontecer, mesmo sem a ajuda do governo brasileiro.
Foi um diplomata beninense aposentado, que lutou na independência do Benim, o embaixador Raphaël Mensah, com quem fizemos a ponte com o governo do Benim. Foi ele quem acionou a Myrina Amoussouga Adam-Bongle, diretora-geral de Assuntos Consulares e Beninenses no Exterior. Foi ela, uma mulher negra, africana, que fez andar o processo, criando o protocolo que ainda não existia, para que a cidadania fosse efetivada.
Não queríamos criar falsas expectativas em Dona Sueli e também fazer uma surpresa. Para isso, contamos com o apoio, a cumplicidade e a ajuda fundamental de Luanda Carneiro Jacoel, filha de Sueli. Afinal, quem pede a cidadania é a própria pessoa, e eu ousei fazer esse pedido em nome de uma velha militante a quem todas nós devemos respeito e deferência. Luanda foi quem consegui a carta que precisávamos e ela que fosse assinada sem Sueli Carneiro ler. Este feito não é só meu. É da minha equipe que trabalhou incansavelmente. É de Luanda, uma filha apaixonada por sua mãe que comprou a nossa ideia e não mediu esforços pra nos ajudar com a documentação necessária. Portanto, foi o nosso pedido e a parceria com a Luanda que possibilitou a cidadania de Benim à Sueli Carneiro.
Neste processo de ir em busca do sonho dessa militante tão importante para a história do Brasil, devemos um especial agradecimento para Myrina, o Ministro das Relações Exteriores, Olushegun Adjadi Bakari, e o Ministro da Justiça e Legislação, Yvon Detchenou. Não somente eles acolheram nosso pedido, como fizeram uma cerimônia de chefe de Estado para receber Dona Sueli Carneiro e estiveram conosco durante todo o evento que durou cerca de três horas. Para mim, essa foi uma demonstração de respeito e reconhecimento à altura dessa brasileira que tanto nos honra.
Geledés- Revele um dos momentos mais surpreendentes nestas filmagens.
Foram muitos e eu poderia citar alguns deles, como por exemplo quando hasteamos a bandeira de Justiça por Miguel no portal de não retorno em Ouidah; na ilha das Conchas, no Senegal, quando na porta do cemitério onde muitos dos nossos foram enterrados; Conceição Evaristo aos pés de um Baobá, nos diz que “Mulheres Negras não morrem” e ainda o momento em que demos a notícia da cidadania à Dona Sueli Carneiro, ali no estacionamento do Ministério da Justiça, em Cotonou.
Geledés – A próxima etapa do documentário está prevista para ser rodada em Cabo Verde, em março de 2025. O que vem por aí?
Mulheres Negras em Rotas de Liberdade é um projeto político que inicie desde a minha primeira travessia em 2012. E são muitos os desdobramentos, o filme é apenas um deles. Teremos outros produtos, temos um diário de bordo riquíssimo, milhares de fotografias, pesquisa. Com nossas travessias estamos criando uma metodologia de produção cinematográfica no continente africano. Também temos um acontecimento muito especial, o artista visual Dalton Paula (premiadíssimo) nos acompanha desde 2023 e esteve conosco nos sets e na viagem de pesquisa e ele vai pintar o filme. Teremos uma exposição de um dos maiores artistas negros contemporâneo, contando nas telas sobre nossa travessia!