Há coisas mais importantes do que o sucesso na carreira: como é que se faz as pazes com o país que nos matou o irmão? Como é que se conta a um miúdo de três anos que os pais foram assassinados? Neste fim de semana em que nos despedimos de um ano e nos preparamos para outro, o Expresso republica histórias, reportagens, conversas, narrativas, dúvidas, considerações, certezas e revelações que fizeram de 2016 um ano preenchido. Todos estes artigos são publicados tal como saíram inicialmente
Fonte: Expresso
por, Luís Barra
Chama-se “O Lobo na Pele de Cordeiro” e é um pequeno quadro da artista irlandesa Susan Norris, que tem nos animais e na vida selvagem o principal tema da sua obra. Está pendurado no gabinete que Francisca Van Dunem ocupa no Ministério da Justiça e é o único objeto pessoal à vista. “Anda comigo para todo o lado”, conta a ministra. Porquê? “Porque os olhos dele dizem tudo. E os olhos das pessoas também não mentem.”
Os de Francisca Van Dunem são vivos, inteligentes e às vezes tristes. A primeira mulher negra a chegar a um Governo em Portugal conseguiu tudo o que havia para conseguir na carreira profissional, mas tem uma cicatriz por curar: saber o que aconteceu realmente ao irmão e à cunhada, desaparecidos em Angola a 27 de maio de 1977, fez na semana passada 39 anos. “Acho que vou morrer com essa esperança”, conta a magistrada de perfil discreto, que falou sem reservas sobre a sua vida.
Com quase 60 anos, a sua vida sofreu uma rotura, e de repente está na política. Planeou isto? Estava à espera? Alguma vez lhe passou pela cabeça ser ministra?
Não. Costumo dizer — e isso mantém-se atual — que o meu presente é o mais imprevisível de todos os futuros que pudesse imaginar. E isso tem-me sucedido ao longo da vida. Nunca me passou pela cabeça exercer uma atividade política. Sou magistrada há mais de 36 anos. Sempre trabalhei na magistratura. Acabei a carreira no Ministério Público, ia iniciar a carreira no Supremo Tribunal de Justiça e preparava-me, no fundo, para começar a desacelerar, daqui a poucos anos.
Ainda consegue andar na rua descansada?
Sim. Não gosto muito da exposição pública. Há pessoas que se dirigem a mim de forma muito simpática. Vêm ter comigo e não só me felicitam como me desejam as maiores venturas e são muito entusiastas relativamente ao que eu possa vir a fazer no Ministério da Justiça.
Não tentam pôr-lhe cunhas para avançar com os processos em tribunal?
Não. Isso nunca aconteceu.
Identidade. Francisca Van Dunem, nascida em Angola há 59 anos, ministra da Justiça desde janeiro, fotografada esta semana pelo Expresso
Ainda vem a pé para o trabalho?
Não. Dantes vinha, mas infelizmente já não posso. Os ministros do MAI, da Justiça e da Defesa têm segurança reforçada, e isso acaba por condicionar um bocadinho os movimentos.
Como é que foi o convite para ministra?
Foi um convite normal. Abordaram-me. Fiquei surpreendida. Não estava à espera.
Foi o primeiro-ministro que lhe ligou?
Não falarei sobre isso. Fui convidada por quem me podia convidar. Pensei menos de 48 horas e aceitei. Porquê? Porque trabalho há 36 anos com os tribunais. Acredito profundamente que é preciso que os tribunais portugueses tenham na relação com a sua comunidade o lugar que merecem. Nos últimos anos, os tribunais foram profundamente fustigados e acabaram, na prática, por se encontrar numa situação em que não tinham forma de se defender. Há uma grande incompreensão em relação à situação dos tribunais. Trabalhei nos tribunais muitos anos, do ponto de vista operacional e em funções dirigentes. Julgo conhecer as suas problemáticas mais relevantes. Creio ter uma boa relação com o judiciário em geral e alguma perceção daquilo que é possível fazer em relação aos tribunais, em primeiro lugar. Em segundo lugar, nunca recusarei nada que tenha a ver com a realização do bem comum. E é isso que está aqui em causa. Há uma situação de emergência e é preciso que haja uma ação conjunta na Justiça para darmos um salto qualitativo no modo como a Justiça se organiza e se apresenta aos cidadãos. E depois porque tenho horror a ideias de exclusão. Há uns que não podem, uns que não fazem parte, uns que são do main stream e outros que estão na marginalidade…
Acha que os magistrados não devem ter qualquer constrangimento em entrarem na política e serem ministros?
Não se trata disso, de começar de repente a fazer uma carreira política. Os próprios estatutos da magistratura preveem que os magistrados podem exercer funções num governo, nomeadamente nas áreas da Justiça. E consideram como tempo da magistratura o tempo exercido em funções de serviço na área da Justiça. Não podemos limitar a Justiça aos tribunais. Há também a dimensão dos registos, do notariado… mas a que se apresenta mais crítica é a dos tribunais. E é natural que ao longo dos tempos tenha havido alguma interpenetração entre as magistraturas e os tribunais. Este lugar é político, eu desempenho um cargo político, mas esta atividade é muito técnica.
Seis meses depois, já se sente na pele de ministra?
O que é que isso quer dizer? Eu sempre terei a minha pele, de Francisca Van Dunem.
Vida. Com os irmãos e uma prima, em 1959, no Sube (a ministra é a primeira da direita)
Fez todos os estudos liceais em Luanda?
Sim, no liceu feminino Guiomar de Lencastre.
Quando pensou em optar por Direito, isso não terá sido um grande motivo de alegria na família…
Foi terrível. Eu tenho uma família com uma estrutura muito patriarcal, em que o irmão mais velho do meu pai, o meu tio José, funcionava como o verdadeiro chefe da família. O seu filho, Fernando, que é meu padrinho de batismo e foi embaixador de Angola em Portugal, tinha vindo para Coimbra estudar Direito e exilou-se, saindo de Portugal numa leva de estudantes das colónias no início dos anos 60. O meu tio tinha uma grande desconfiança em relação às possíveis consequências das vindas para a então “metrópole” estudar Direito. Achava que o ambiente académico na área do Direito acabava por nos associar a atividades políticas. Sobretudo achava que eu, sendo mulher, não devia correr esse risco. E depois, como o meu avô tinha sido deportado várias vezes, por razões políticas, o meu tio entendia que devíamos tirar cursos técnicos, porque nos permitiam trabalhar em qualquer lugar. Devíamos ser médicos, engenheiros e não nos metermos no que achava serem aventuras perigosas.
Como é que conseguiu convencer a família?
Com 15 anos, ao chegar ao sexto ano do liceu, inscrevi-me na alínea E, que era a de Direito. Cheguei a casa, disse ao meu pai, que ficou triste e disse-me que eu tinha de ir falar ao meu tio. E eu fui.
E o seu tio…
O meu tio reagiu como seria de prever, mas não me proibiu. Perguntou-me coisas como: “A senhora pensa que fazer um curso de Direito é fazer alguma coisa? A senhora não tem ideia de que o curso de Direito não serve rigorosamente para nada? A senhora não acha que um curso de Medicina, de Engenharia, de qualquer outra coisa seria muito mais útil? Os senhores têm devaneios…” Eu ouvi respeitosamente, como devia fazer, e no fim ele disse-me: “Bem, a senhora está inscrita, está inscrita. Só veio cá dizer que se inscreveu.” Eu aquiesci, dando-lhe razão, e fui para casa de cabeça baixa. Esperava que me proibisse. Que me obrigasse a alterar a inscrição. A sua reação desorientou-me. Tinha levado todos os argumentos para uma batalha que não chegou a acontecer. O meu tio viveu cá os últimos anos da vida dele e tinha comigo uma relação de intensa afetividade. Gostava muito de mim, e eu gostava muito dele. A circunstância de me ter atrevido a afirmar-me contra o que sabia ser a sua vontade, de lhe ter ido dizer o que ia fazer, deu-lhe a ideia de que eu tinha a coragem dele. E ficámos muito próximos. Quando comecei a trabalhar no MP, não tinha cuidado com os registos oficiais: a nomeação, as promoções que saíam no “Diário da República”. Ele organizava tudo numa pastinha que me entregou e que se encarregava de atualizar. Depois, foi para Luanda e acabou por morrer lá. Vivemos aqui uma relação de uma enorme proximidade. Foi uma pessoa de quem eu na infância tinha medo e com quem depois acabei por ter uma relação afetiva muito profunda.
Em 1976, já adolescente, na casa da família em Luanda
Não havia Direito em Luanda. O choque foi muito grande quando chegou a Lisboa?
O choque foi tremendo. Tinha 17 anos. Luanda era uma cidade aberta. Lisboa era uma cidade fechada e sombria nesse tempo. Fechada nos costumes, havia grupos muito fechados, e era uma cidade cinzenta. Eu vinha de Luanda descontraidamente. As pessoas estavam habituadas a falar com toda a gente, a vestir-se sem nenhuma preocupação, não só pelas questões do clima mas por influência da África do Sul e de Moçambique. As raparigas tinham uma forma de vestir mais solta. Eu trazia umas saias que eram curtíssimas para cá, mas eu não sabia. Não tinha a mínima noção.
Era o tempo em que uma mulher era mal vista se ia a um café…
Não. Nessa altura ia-se muito aos cafés. Havia muitos cafés de estudantes. Mas até a isso eu não estava habituada, àquele ambiente escuro em que as pessoas estavam vergadas sobre os livros, a fumar. Naquele tempo fumava-se muito. Era um ambiente um pouco surreal, era como se entrasse de repente num filme fantástico. Eu estava habituada ao ar livre, às esplanadas, ao sol… Essa entrada inicial foi de facto um pouco traumática.
Fez o curso sem interrupções?
Interrompi o curso em 1975, fui para Luanda e só regressei em 1976. E pus-me a fazer as cadeiras que podia e não podia.
Interrompeu por causa da independência de Angola?
Sim. Havia um clima de guerra civil às portas da cidade de Luanda. As comunicações eram difíceis, era preciso pedir à Marconi e ficar à espera.
Já estava habituada à vida aqui.
Não se tinha passado assim tanto tempo. Eu vim para cá em 1973 e sempre na perspetiva de me formar e de voltar para Angola.
Porque é que decidiu regressar a Angola?
Em 1974 fui de férias a Luanda e regressei a Lisboa. Mas em 1975 a situação em Angola agudiza-se. Vou ouvindo todos os dias notícias de confrontos na cidade. Há muitos dias em que não consigo sequer contactos com a minha casa, com os meus pais. Na altura, ainda por cima, o meu irmão mais velho, o José, era dirigente de um dos movimentos em confronto, o que os punha mais em risco. Os meus pais tinham de mudar de casa várias vezes, eram levados de um sítio para outro. E isso causava-me uma grande inquietação. Não me passava pela cabeça estar aqui, a esta distância, sem ter notícias, sabendo que eles podiam estar a correr perigo. E por isso tomei obviamente a decisão de partir e fui.
E porque é que depois volta a Portugal?
Em 1976, após a independência, o meu pai estava zangadíssimo, porque ninguém regressava a Lisboa. Tínhamos estado os três a estudar em Lisboa — o meu irmão João, que tinha estado em Direito e passara para Jornalismo, e a minha irmã Efigénia, que estava em Arquitetura — e de repente estávamos todos em casa. O meu irmão mais velho, o José, achava que devíamos voltar e acabar a formação. Nessa altura decidi não voltar a Portugal e tentar continuar os estudos em Moçambique. Mas tinha de voltar ao primeiro ano e não gostei do ambiente. Foi um pouco estranho. E portanto decidi voltar a casa, sabendo que o meu destino seria Lisboa. Cheguei a Lisboa em 1 de maio de 1976, voltei a estudar, e o meu plano era regressar a Angola. Eu acabaria em 1977. Fui a Luanda em março desse ano, tinha acabado o primeiro semestre, e levei até a maior parte das coisas que aqui tinha, para não acumular para o final do ano. E é engraçado que, quando regressei a Lisboa e tinha a perspetiva de me ir embora, eu que vivia então no Campo Grande, comecei a olhar para o jardim, para as aves e de repente pensei: meu Deus, mas isto é bonito, afinal eu gosto disto. Num certo sentido, eu redescobri-me e descobri uma harmonia que ainda não tinha identificado com aquele espaço, com aquele lugar, que era o sítio que frequentava, que era o círculo universitário e o espaço do Campo Grande. Mas depois aconteceu o maio de 1977 [suposta tentativa de golpe liderada por Nito Alves que acabou com a morte e o desaparecimento de milhares de angolanos, entre os quais José Van Dunem e a mulher, Sita Valles] e eu não pude regressar. A primeira reação que tive foi tentar apanhar um avião, mas o espaço aéreo estava fechado, e depois percebi que não haveria condições para voltar.
Porque teve medo de lhe poder acontecer o mesmo?
Nessa idade não se tem medo. Nessa idade, se havia coisa de que tinha medo era de sentir medo. Tinha vergonha de sentir medo. E portanto fazia tudo para ultrapassar o medo. O que aconteceu foi que percebi que a única maneira que tinha para ajudar era tentar, através de organizações internacionais de defesa dos direitos humanos, nomeadamente da Amnistia Internacional, conseguir encontrar apoio para ver se havia um julgamento livre e justo.
Na Nazaré, em 1975, durante um fim de semana
Nessa altura, os seus pais estavam ainda em Angola?
Os meus pais saíram de Angola em outubro de 1977 e trouxeram o filho do meu irmão e da minha cunhada, o Che.
…que a Francisca depois criou.
Sim. Ajudei a criar.
Ele decidiu regressar e vive hoje em Angola. E o seu irmão João decidiu também regressar a Luanda para o apoiar. Como é que viu essa decisão?
O João era a minha alma gémea. Eu vi com bons olhos o regresso do João. Embora ele tivesse uma carreira bem sucedida na BBC, chefiava a secção de língua portuguesa, sentia nele sempre um espaço de vazio. E o grande espaço de vazio que tinha era Angola. Angola fazia-lhe falta. Tinha necessidade física. E a sua ida acabou por ser associada à ida do Che.
E, apesar de serem almas gémeas, a Francisca não tem esse espaço vazio em relação a Angola?
Eu tenho. Fica sempre. Há sempre um lugar em nós, um bocado em nós que está perdido algures, não no espaço cósmico. Sabemos onde está. Mas nestas coisas tem de haver alguma racionalidade. No jogo entre o espaço do possível, do fazível e do desejável, é preciso encontrar algum realismo. A minha mãe tem 93 anos e vive comigo. Eu tenho uma carreira feita aqui que não me passa pela cabeça abandonar de um dia para o outro. A partir de uma certa altura, foi uma escolha que fiz. E foi uma escolha consciente.
Quando regressou a Angola?
A primeira vez que regressei a Angola fui com o então procurador-geral da República, conselheiro Cunha Rodrigues, em 1997, depois voltei lá com outro procurador-geral, o conselheiro Pinto Monteiro, e depois a seguir à morte do João. Ele foi enterrado cá, mas as cerimónias do sétimo dia foram feitas lá. Depois disso fui lá mais uma vez.
Que país é que encontrou?
Encontrei o suficiente para ficar em paz com a minha identidade, mas obviamente encontrei um país diferente daquele que deixei há quase 40 anos. As coisas mudam. Há uma evolução necessária em Angola como em qualquer outro lugar. O que me faz alguma confusão às vezes é não encontrar os lugares que conheci. Passar por uma rua e não a reconhecer. Há muros muito altos por razões de segurança e há zonas muito descaracterizadas.
A casa onde vivia ainda existe?
As casas onde vivi ainda existem. A casa onde passei a infância, aquela a que estou mais ligada, é uma casa na Rua João das Regras.
O seu filho também está a fazer uma experiência profissional em França?
Eu habituei-me a esta família de diáspora. Na prática, juntamo-nos no Natal e no aniversário da minha mãe. Eu criei praticamente todos os meus sobrinhos por causa da guerra. O meu pai veio para cá e não se conseguiu aguentar. Fez AVC sucessivos e nunca conseguiu recuperar do que aconteceu.
Acha que morreu de desgosto?
O meu pai morreu de tristeza. Interiorizava muito as coisas. Escrevia muita poesia. Tinha uma vida interior muito intensa. Acabou por ficar num estado de tristeza e de desconsolo que não teve retorno. As minhas irmãs mandaram os filhos para Lisboa, e eles foram criados aqui. E depois foram todos fazer a universidade fora, com exceção de uma. E eu, a partir dessa altura, habituei-me a que todos eles sairiam. O meu filho resolveu ir para Poitiers fazer Sciences Po.
E como é que viu a pulsão que ele teve de intervir civicamente na campanha de Sampaio da Nóvoa para as presidenciais?
É a natureza das coisas. Ele já tem 18 anos. O meu irmão mais velho começou a atividade política com 14, 15 anos. Lá em casa tenho a experiência de as pessoas começarem muito cedo a participar do ponto de vista cívico, a terem capacidade para distinguir o bem do mal, nas sociedades, e a terem a tentação para se portarem bem, no sentido de agirem como cidadãos de bem. Nós vivemos num mundo de grande diletância, em que as pessoas têm um discurso teórico justo, mas com alguma discrepância entre o discurso e a ação, o que na minha juventude se chamavam os diletantes. Claro que tenho alguma apreensão, como todos os pais e mães. Quero muito que ele seja feliz, que encontre um caminho. Ninguém quer que os filhos passem por agruras na vida. Para agruras chegam as minhas. Se o Criador for justo, perceberá que a parte que me fez caber chega para os meus filhos.
Em 1997, no primeiro regresso a Angola, com José Sousa Mendes, atual secretário-geral da Justiça, e Ernesto Maciel, então chefe de gabinete de Cunha Rodrigues
Ainda tem alguma esperança que seja possível fazer luz sobre o que se passou em relação ao seu irmão, José Van Dunem, e à mulher, Sita Valles?
Acho que morrerei com essa esperança. Enquanto viver terei essa esperança. Os países ganham em que se faça luz sobre os processos políticos, por mais dolorosos que sejam. Do ponto de vista pessoal, como irmã do Zé, tenho o dever de dizer que, considerando a vida que fez de militância — ele morreu com 26 anos, começou aos 14 na militância ativa inteiramente dedicada ao seu país, à ideia de independência, de justiça, de justiça social —, a História se encarregará de fazer luz sobre isso e que não iremos continuar para o resto da vida sem saber o que se passou. E não se trata de saber por saber, porque o que se vai saber não é bonito, não é bom. Estou totalmente pacificada relativamente a isso. Percebo que na formação dos países é difícil encontrar um que não tenha começado por lutas sangrentas, nem sempre os que morrem são só os bons ou só os maus. Agora gostava que lhe fosse feita justiça, como nacionalista que foi e que dedicou a vida ao seu país.
Fez alguma diligência para saber o que é que aconteceu?
Sim.
Teve alguma resposta?
…
No caso do 27 de maio de 77, a família Van Dunem esteve dos dois lados da barricada. Isso não provocou afastamentos?
Eu diria que houve um momento de algum gelo. Nós sempre tivemos uma enorme unidade familiar. Houve um momento de alguma desorientação. Mas depois as coisas recompuseram-se, como só podia acontecer numa família que tem laços muito fortes e antigos como a minha. Nós juntamo-nos todos, unimo-nos todos, curiosamente procuramos não falar muito do passado, falamos do presente, mantemos a unidade e preservamos o legado que os nossos pais nos deixaram. Sempre trabalharam de um modo muito próximo, muito cooperativo. O meu pai e os meus tios faziam tudo para todos, compravam os brinquedos para os filhos todos ao mesmo tempo, para todas as casas. Era uma coisa de uma enorme justiça. E foi aí que eu aprendi que temos de tratar as pessoas por igual, independentemente de serem filhos biológicos ou não.
Como é que contou ao Che o que tinha acontecido aos pais?
Ele foi percebendo, porque era objeto de uma grande observação. Cada vez que uma pessoa se aproximava dizia: “Ah, este é que é o filho de…, é este, é ele…” E ele foi percebendo que havia à volta dele o ambiente de algum secretismo. Foi para a escola com 3 anos e começou a perceber que todos os meninos tinham pai e mãe. Nós dissemos que os pais não estavam cá. Que estavam ausentes em Angola. Na verdade, não sabíamos o que tinha acontecido e não seríamos nós a dar como assente que estavam mortos. Mas depois os pais dos outros primos vinham visitar os filhos, e ele começou a pensar que os pais não gostavam dele. Não vinham, não escreviam, não telefonavam. Nós dizíamos que os pais estavam num lugar sem comunicações, mas não foi possível dizer a mesma coisa sempre. Houve uma altura em que foi preciso dizer-lhe o que tinha acontecido. Não sabíamos se estavam mortos, estavam desaparecidos. Mas tendo passado tanto tempo o mais natural é que estivessem mortos. Foi muito doloroso. Pesado.
Como é que conheceu o seu marido?
O Eduardo [Paz Barroso] era amigo de um grande amigo meu, o Renato Cardoso. O Eduardo diz que foi meu professor, mas eu não me lembro. Ele alega em sua defesa que foi professor de vários colegas meus, mas eu não confirmo.
Tem algum significado para si ser a primeira mulher negra a chegar ao Governo?
Não creio ter vindo para o Governo por ser mulher ou por ser negra. Estou convencida de que o convite que me foi dirigido tem a ver com o meu passado, com a minha experiência profissional. Mas não posso excluir que, do ponto de vista simbólico, num país como Portugal, onde existe uma população negra que provavelmente tem relativamente a ela própria uma ideia de exclusão ou de dificuldade de ascensão na pirâmide social, isso possa efetivamente ter tido significado positivo para a comunidade. E se isso tiver significado para a comunidade que o mundo não lhe está fechado, que todos podem fazer o seu percurso, as suas carreiras, irem tão longe quanto quiserem desde que trabalhem para isso, então acho que foi importante.
É mais difícil para um negro?
As questões colocam-se em termos raciais e sociais. Se fizer uma análise da situação económica da população negra, provavelmente vai chegar à conclusão de que vivem em condições de exclusão, que dificulta a progressão. O outro fator também é importante, mas tem mais a ver com a pobreza.
Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 4 junho 2016