Ao lançar sua carreira solo, Valesca Popozuda disse numa entrevista: “A bunda é uma parte importante da minha carreira, não nego, mas não me considero só isso”.
Texto de Bia Cardoso.
A bunda feminina talvez seja um dos símbolos mais lembrados quando o assunto é funk. Com letras que chamam mulheres de “cachorras” e as convidam a “remexer o popozão” para deleite dos homens, parece impossível estabelecer ligações entre funk e feminismo. Porém, tanto a cultura como os movimentos sociais não são estáticos e refletem as mudanças de nosso tempo.
O funk pode ser feminista? Valesca Popozuda é feminista? São perguntas que vemos nos debates atuais. Valesca pode se dizer feminista, assim como pode se autoafirmar o que quiser. O feminismo não tem dona e nem cartilha a ser seguida, está aí para ser desmitificado, remixado e reelaborado como tantos outros pensamentos. Quanto ao funk, o que interessa, e muito, são as músicas feitas e cantadas por mulheres.
O funk ainda tem um longo caminho para ser reconhecido como um produto cultural brasileiro. As letras obscenas ainda são vistas como uma afronta a moral e aos bons costumes, além de serem questionadas sobre seu incentivo a violência. É fato que o funk reflete um cotidiano de uma determinada parcela da população, que vive um cotidiano violento, repressor, socialmente vulnerável e onde há muito interesse pelo sexo como diversão e prazer. Estes, não são os mesmos valores da elite cultural que faz cara feia para as rimas explicitamente pornográficas, os figurinos provocantes e para os movimentos de dança sensuais.
Mas e aí, o funk é feminista? Como tudo nessa vida, pode ser e pode não ser. Na minha opinião, depende do contexto.
Feminismo é um movimento político e social que defende a igualdade entre os sexos. Porém, mais que isso, o objetivo do feminismo é garantir a autonomia das mulheres, seja em suas decisões pessoais ou nas coletivas que impactam a vida dos diferentes grupos de mulheres. Quando uma mulher sobe ao palco e pode dizer o que quiser no microfone, muito empoderamento pode sair daí. Especialmente quando ela canta sua realidade, seja reivindicando seu direito ao prazer sexual, denunciando a opressão machista ou rompendo com padrões de beleza. O funk é o que fazemos dele. Assim como o feminismo também é o que construímos a partir dele.
A liberdade sexual feminina é uma das grandes temáticas do funk feito por mulheres. E, me espanta, que ouvir uma mulher dizer com todas as vogais e consoantes que gosta de sexo ainda seja visto como algo chocante, pertubador. A revolução sexual começou nos anos 70, mas parece não ter alcançado sua plenitude na prática, especialmente para as mulheres. Então, as funkeiras acabam sendo uma boa novidade e até mesmo um frescor para uma pauta importante e muito estigmatizada.
A vida das mulheres ainda é muito pautada por julgamentos morais. No funk é possível encontrar mulheres negras, gordas, loiras e de diversos outros tipos físicos cantando e reivindicando seu prazer sexual. Isso pode ser visto como uma entrada do feminismo na sociedade, por meio do questionamento e da autorreferência de termos como “cachorra”, “piriguete” e “puta”. A ressignificação dos termos, por meio de sua apropriação é uma tática que vem crescendo dentro do feminismo, especialmente em ações públicas recentes como a Marcha das Vadias, que tem como objetivo principal lutar contra a culpabilização das vítimas de violência sexual.
É claro que o machismo não foi excluído das letras cantadas pelas funkeiras. Há ataques a outras mulheres, muita disputa por machos, pouco espaço para relações que não sejam heteronormativas. Porém, isso são mais elementos que compõe a mistura que forja o funk. Mas uma coisa pode ser machista e ao mesmo tempo feminista? Nada impede. Afinal, machismo e feminismo não são opostos. O machismo é uma estrutura social, enquanto o feminismo é um movimento político social. Ao olhar para um fenômeno escolhe-se qual lente utilizar. O importante não é definir se o funk é feminista, mas investigar como esse movimento empodera mulheres, especialmente as que vivem à margem da sociedade, nas periferias.
Deize Tigrona, Tati Quebra Barraco, Vanessinha Pikachu, Valesca e a Gaiola das Popozudas, entre outras funkeiras, cantam seus orgasmos, reclamam de homens que falam demais e fazem de menos, dizem explicitamente o que querem fazer na cama, quais suas táticas de conquista, apresentam coreografias e ficam na madruga boladonas. Esculacham.
No final dos anos 90, início dos anos 2000, não era tão comum encontrar mulheres funkeiras cantando. A maioria dos bondes que faziam sucesso nas rádios, bailes e festas eram formados por homens. As “preparadas”, “tchutchucas” e “cachorras” eram, na maioria das vezes, dançarinas. Portanto, também é importante notar essa tomada de posição, o momento em que as mulheres saem do fundo do palco e tomam conta do microfone. Continuam sendo as “popozudas”, continuam dançando, mas agora dizem em alto e bom som: “pode me chamar de puta, eu sou absoluta”.
Texto publicado originalmente na Revista Ocas, edição 94, março/abril de 2014.
Foto de Vincent Rosenblatt/Agencia Olhares.
Fonte: Blogueiras Feministas