Na última quarta-feira, 03 de junho, Barack Obama, ex-presidente dos Estados Unidos, fez um pronunciamento sobre o assassinato brutal de George Floyd por um policial branco de Minneapolis. Na ocasião, Obama expressou suas condolências, e da ex primeira-dama, Michelle Obama, à família de Floyd e seguiu sua análise sobre o momento crítico pelo qual passa o país. Entre as similaridades das injustiças enfrentadas pela população negra nos Estados Unidos e aqui no Brasil, destaco a inercia e resistência em discutir e implementar reformas na política de segurança pública.
É preciso lembrar, sempre, o papel do racismo em estruturar e produzir injustiças em uma sociedade. Tal fenômeno foi registrado por Obama que categorizou como um problema estrutural dos EUA e classificou como uma praga as suas consequências, a exemplo de Jim Crow (leis de segregação racial), redlining (negação sistemática de serviços a determinado bairro) e o racismo institucional.
Feito este reconhecimento, Obama colocou em destaque como combater e prevenir casos como este em Minneapolis. Citou como exemplo o assassinato, em 2014, de mais um jovem negro, Michael Brown, por um policial, quando ele criou uma força tarefa para analisar a política de policiamento com base em dados e resultados comprovados(1). No ano seguinte, maio 2015, o relatório final foi divulgado como um guia de implementação de ações, baseadas em evidências, para um policiamento do século XXI.
Lembrando da participação dos jovens americanos nos momentos de grandes transformações, da importância dos profissionais envolvidos na aplicação das leis, das pessoas com cargo eletivo como prefeitos e governadores, Obama fez um chamamento a todos para se engajarem na reforma do policiamento.
“E o Brasil tá como?”
Não é novidade, nem exagero, que a sociedade brasileira padece da mesma doença. Homicídios contra jovens negros são quase três vezes maiores do que brancos e, além disso, colecionamos casos brutais e emblemáticos como João Pedro, menina Ágatha, menino Joel, músico Evaldo, que foi assassinado, pelo Exército Brasileiro, com 80 tiros, dentre outros.
Não está na hora de se fazer mudanças profundas na política de segurança pública? Mudar a prática que adota o disparo como o primeiro recurso, carregado de concepções racistas, que não investiga e não soluciona crimes? Lamentavelmente, nós ainda perguntamos, “cadê o Amarildo”? e “quem mandou matar Marielle”?
No ano de 2015, a Câmara dos Deputados realizou uma CPI destinada a apurar as causas, razões e consequências dos casos de assassinatos e desaparecimentos de jovens negros e pobres no Brasil. No ano seguinte, o Senado instituiu a CPI do Assassinato de Jovens. Em resumo, entre as propostas apresentadas por essas duas comissões estão: aprovação do PL 4.471 que põe fim aos autos de resistência e determina a abertura de inquérito para todas as mortes resultante de ação policial (sim, hoje, a maioria das mortes resultantes de confronto com a polícia sequer é investigas); aperfeiçoamento do controle externo da Polícia pelo Ministério Público; mudança nas atribuições para que a polícia realize o ciclo completo do trabalho policial (preventivo, ostensivo, investigativo), e não uma polícia que investiga e a outra que prende; e a aprovação de um Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens.
Infelizmente, não houve mudanças relevantes e .muitas das propostas não foram implementadas. Por outro lado, propostas com grande probabilidade de aumentar injustiças e agravar a violência foram apresentadas, a exemplo da PEC 171/93 para a redução da maioridade penal; flexibilização de aquisição de armas e munições; ampliação da excludente de ilicitude (isenção de punição) para crimes de policias que alegarem ter agido sob “medo, surpresa ou violenta emoção”; e até a importação da plea bargain dos EUA (acordo para o acusado confessar o crime e fixação de pena sem a participação do juiz). O estudo “A cor da Justiça”(2) nas prisões dos EUA demonstra que a taxa de encarceramento da população negra é cinco vezes maior que a de brancos, em alguns estados, chega a ser dez vezes maior como em Minnesota, palco do assassinato de George Floyd.
Chegamos a 2020 com a praga do racismo e práticas de policiamento do século passado, tanto nos EUA quanto no Brasil. Faz-se necessário um movimento de toda sociedade na busca de um novo modelo de segurança pública. Por que não um policiamento fincado em valorização da vida, onde todas tenham o mesmo valor, que invista em prevenção e que prepare os agentes de segurança para servir, com técnicas e investigação que produzam resultado?
Sabemos que não há mágica, nem receita de bolo. Mas definitivamente, precisamos de uma política de segurança do século XXI.
[1] O pronunciamento completo e o relatório da força tarefa (Task Force on 21st Century Policing) estão disponíveis no site www.obama.org
[2] Nellis, Ashley. The Color of Justice: Racial and Ethnic Disparity in State Prisons, 2016. Disponível em <https://www.sentencingproject.org/publications/color-of-justice-racial-and-ethnic-disparity-in-state-prisons/#V.%20Recommendations%20for%20Reform>. Acessado em 06/06/2020
Michel Chagas é militante do movimento negro, membro do Instituto Steve Biko. É especialista em Gestão Pública Municipal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e mestre em Políticas de Desenvolvimento Internacional pela Universidade Duke.