Michel Nascimento, meu amigo-irmão que esteve em Salvador neste ano pela milésima vez, na véspera da minha viagem, me disse que uma das coisas mais bonitas da cidade era que as pessoas dão os próprios nomes aos negócios delas.
Segundo ele, era uma coisa da autoestima negra baiana, que o Rio de Janeiro não consegue alcançar. Eu já contei que Salvador foi a primeira cidade, antes de eu ir a Luanda, em que me sorriram na rua, que me chamaram de bonita, de princesa, de rainha.
Numa realidade em que há até pouco tempo os negros eram desestimulados, inibidos ou proibidos de possuir bens, terras, de frequentar a escola e de votar, ter um empreendimento e dar a ele o seu próprio nome é um ato cultural, político e de resistência no mundo. Só mesmo um povo assim poderia fazer a verdadeira Independência do Brasil.
E foi assim que, na minha segunda vez na cidade, passei a ver com outros olhos tudo quanto era empreendimento. Do Bar da Mônica ao Acarajé da Dinha, da Cira, da Mary, passando pelo Petisco da Rita, o Boteco do Bigú, o Bar do Ulisses ou do Batatinha. É tanto que, mesmo empreendimentos que não carregam o nome da pessoa, carregam a história dela, como o Opaió, de Érico Brás, ou o Axêgo, do saudoso senhor Manoel. Quando o negócio carrega o nome de santo ou orixá, a gente já sabe quem é o dono do lugar.
Por essas e por outras, não havia dúvida da cidade onde eu queria assistir a Gilberto Gil ao vivo pela primeira e talvez última vez.
A gente atravessou mais de cinco mil quilômetros ansiosos, de Luanda a Salvador, passando pelo Rio, mas a Baêa não é um lugar onde você possa só chegar e sair, é preciso ficar, ouvir as histórias e entrar no tempo das pessoas.
Eu tenho um sonho de vida: andar de mãos dadas com o tempo. É impossível estar à frente, mas queria a sensação de não estar atrasada. Ter sempre um braço direito estendido, esticado até a ponta dos dedos, tentando segurar o rabo do tempo, que sempre me escapa.
A inveja que eu tenho do baiano não é do sotaque ou da autoestima (ou é também), mas é que parece que o Tempo nasceu lá e todos os baianos são filhos Dele, por isso não estão ansiosos. O restante do Brasil, especialmente o Sudeste, fica tentando entender, decifrar esse tempo que não é calmo, é o tempo do tempo, de quem sabe que o melhor lugar do mundo é aqui e agora e que não adianta correr.
E fazemos perguntas de principiante:
— A moqueca demora muito?
Pra ouvir a resposta brilhante:
— Demora o tempo de preparo, minha princesa.
Então, quando o Filho do Tempo subiu ao palco às 20h36 do dia 15 de março deste ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, nós, os súditos do tempo, tivemos o privilégio de assistir a essa espiral. O ponto sem nó parecia correr linear, mas era cíclico, dava voltas em cada época, em cada ritmo, nos diversos tempos que alguém de 82 anos de idade e mais de seis décadas de carreira pode percorrer.
Nada faltou, apesar da minha vontade de ouvir “Sandra”, “Futurível” e “A raça humana”. Eu já sabia que seria impossível agradar a gregos e baianos. Tudo valeria só pelo privilégio de ouvir “Cálice”, tudo valeu pela generosidade de um mestre que se dedica à própria carreira e ao seu público até o final. Eu me sinto agraciada de viver neste tempo.
Gilberto Gil é um baiano dono das próprias coisas e seu nome está em todas elas. Ele anda de mãos dadas com o tempo e por fim nos manda “Aquele abraço”.