Identitarismo, feminismos negros e política global

Por que tais movimentos tornaram-se bodes expiatórios do fracasso de políticas progressistas ou de esquerda?; problema monumental é que não somos ouvidas

Já faz algum tempo que o identitarismo não sabe o que é baixa temporada; sempre que cutucado, mostra fôlego para elevar o debate aos trending topics da política contemporânea, atraindo chuva e trovoada para seu território.

Embora o termo tenha se imposto nos últimos anos, empurrado pela ventania das guerras culturais que ganharam outras camadas de complexidade na década de 1980 nos EUA, os marcos fundantes do identitarismo perdem-se sob os lençóis do tempo.

Como bem lembrou Douglas Barros no livro “O que é Identitarismo?” (ed. Boitempo), “aquilo que chamo de identitarismo, porém, nem de longe é fenômeno novo. Amplamente utilizado durante a modernidade, suas raízes são coloniais e seu uso dissuade a política real. A diferença, todavia, neste início de século, reside no fato de que, se antes ele era um fenômeno típico da extrema direita, hoje se encontra entranhado na vida social. (…).”

Participantes da 20ª Marcha da Consciência Negra, em São Paulo – Gero Rodrigues – 20.nov.23/Ofotográfico/Folhapress

Segue Barros: “Não são os movimentos sociais —em especial os movimentos negros, feministas ou LGBTQIAPN+— os causadores do identitarismo. Muito pelo contrário, o identitarismo é a imposição de uma engenharia social, organizada a partir da logística e da gestão, que coloca as identidades na mira da administração como forma de policiamento”.

Se o identitarismo não é obra dos movimentos de emancipação, por que testemunhamos, em profusão, argumentos que apontam seu armamento para tais movimentos, denunciando uma prática reducionista responsável por esvaziar a luta anticapitalista e o entendimento da macropolítica? Por que tais movimentos tornaram-se bodes expiatórios do fracasso de políticas progressistas ou de esquerda?

As recentes declarações da psicanalista Maria Rita Kehl sobre o assunto sintetizam uma linha de pensamento que desfere flechas que erram o alvo. Kehl converte grupos historicamente discriminados e identitarismo em coringas intercambiáveis. Nessa condição de equivalência, negros, mulheres, população LGBTQIAPN+ (os terrivelmente outros do mundo) se movimentam em nichos narcísicos, interditando a fala de quem não está perfilado neste ou naquele nicho.

Evidentemente que não ignoro um fenômeno que fez da dimensão da experiência (aquilo que acontece comigo) um discurso competente e exclusivo que só pode ser enunciado por quem tem “lugar de fala” (outra expressão que foi amplamente distorcida). Mas tal anomalia é fruto de uma subjetividade neoliberal (e não dos movimentos sociais), que crescentemente ganha proeminência porque banhada na luz das malhas digitais.

Embora discorde de algumas críticas dirigidas a Maria Rita Kehl (refiro-me aos argumentos que duelaram num campo regressivo), é preciso golpear a mensagem sem golpear a mensageira (“ne nuntium necare”, ou seja, “não mate o mensageiro” nem sufoque a artista).

As mulheres negras brasileiras vêm comunicando percucientemente para o conjunto da sociedade que o endereço dos identitaristas está bem distante daquele no qual as flechas de Kehl e de tantos outros foram lançadas. O problema monumental é que não somos ouvidas, somos sumariamente esquecidas para pensar os destinos de uma coletividade (um rápido sobrevoo nas movimentações do poder nos permitirá captar a ausência de corporeidades negras e indígenas, flagrando quem são os moradores dos nichos narcísicos).

Identitaristas tomam a identidade com propósito finalístico e, quase sempre, biologizam a política, o que não ocorre com os movimentos de emancipação.

Neste ano, em 25 de novembro, acontecerá a 2ª Marcha das Mulheres Negras rumo a Brasília, cujo slogan é: “Por Reparação e Bem Viver”. Se lidas e ouvidas com atenção, essas palavras carregam a radicalidade de um movimento que, ao articular sua identidade (que é diferente de identitarismo), propõe novas formas da configuração da política, numa atmosfera onde não há nada novo sob o sol.

Nessa atmosfera em que a “boa nova” eleva seu canto fúnebre a partir dos EUA (o mix de colonialismo, xenofobia, misoginia, racismo e domínio descontrolado do império sobre o mundo), a 2ª Marcha das Mulheres Negras confronta o capitalismo e propõe outras gramáticas políticas que incidem no tecido de um mundo carcomido pelo identitarismo.

Nada mais anti-identitário do que ir na contramão dessa rubrica!


Rosane Borges – Jornalista, escritora e professora da PUC-SP

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