Goiânia dividida em preto e branco

Cartografia evidencia segregação étnico-racial no espaço urbano da capital

Por Gustavo Motta, do Jornal UFG

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A capital goianiense abriga uma população composta por 1,3 milhão de pessoas, conforme o Censo 2010 do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE). Desse número, 655 mil pessoas se classificaram “pretas” ou “pardas” – contingente que equivale à população negra e corresponde a cerca de 50% do total. Para entender como a formação do espaço urbano dialoga com as questões de cor e raça, o geógrafo Danilo Cardoso Ferreira realizou uma pesquisa cartográfica no âmbito do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais (Iesa) da UFG, visando identificar a diferenciação e a segregação racial em Goiânia.

A partir do estudo, o pesquisador afirma que a capital goiana é uma cidade desigual e segregada. A manifestação do racismo é reproduzida na divisão do espaço urbano. Segundo Danilo, “as desigualdades se reproduzem na espacialidade”. Ou seja, elas contribuem para a “criação de locais ocupados por grupos semelhantes entre si”. O autor da pesquisa notou que a cartografia expôs as áreas de coexistência e concentração das populações branca e negra no âmbito da localidade.

Espacialidade

A projeção cartográfica foi realizada com base em estudos bibliográficos e dados estatísticos. “Partimos do mapeamento da distribuição populacional da cidade, segundo dados de renda e cor, em conformidade com o Censo 2010”. A realização de trabalhos em campo, como visitas a espaços de expressões negras, colaborou para a formação de mapas temáticos. Entre tais espaços, constam terreiros e centros (para práticas relacionadas à Umbanda e ao Candomblé), além de locais para festas, como as tradicionais congadas e homenagens à Nossa Senhora do Rosário.

Nesse sentido, tanto a manifestação cultural quanto o percentual da população afrodescendente têm importância para a constatação de “espaços negros”. A pesquisa definiu como tais espaços, aqueles cuja população negra é igual ou superior a 75% – o que não foge do padrão aplicado em estudos anteriores, realizados em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, que serviram de base teórica para a pesquisa. “Estes estudos indicam que os locais urbanos do ‘segmento negro’ estão nas regiões periféricas, com baixa infraestrutura e domicílios em áreas de risco ou aglomerados precários”.

Aglomerados

O estudo indica que as regiões sul, sudoeste, centro e leste constituem “espaços brancos”, onde a maioria da população (acima de 75%) é branca e possui renda igual ou superior a cinco salários mínimos. Entre os bairros que correspondem a essa região, constam os setores Central, Leste Universitário, Aeroporto, Campinas, Coimbra e Bueno. E também aqueles que possuem os maiores valores de imóveis por metro quadrado: Oeste, Marista, Sul e Jardim Goiás. O pesquisador ainda indica que essas regiões recebem maiores investimentos públicos em infraestrutura, o que valoriza os imóveis locais.

Entretanto, as regiões formadas por esses bairros também comportam os chamados “aglomerados subnormais”. Conforme o IBGE, essa classificação corresponde aos conjuntos formados por mais de 50 unidades habitacionais, caracterizadas pela ausência de escrituras imobiliárias. Outros aspectos que ajudam a definir esse tipo de espaço são as irregularidades nas vias de circulação, no formato dos lotes, e carência de serviços públicos essenciais. “Esses aglomerados são ‘espaços negros’, em meio aos bairros privilegiados e ocupados por maioria branca”, afirma o pesquisador.

Precariedades na coleta de lixo, ausência de saneamento básico, de rede elétrica e iluminação pública são alguns dos problemas enfrentados cotidianamente pelas famílias que vivem nesse tipo de comunidade. Entre os exemplos, citados pela pesquisa, estão as comunidades de Quebra Caixote e Emílio Póvoa, localizadas, respectivamente, nos setores Leste Universitário e Criméia Leste.

Ao todo, existem sete na capital. Segundo o IBGE, a existência desses espaços está relacionada à especulação imobiliária e fundiária, e é decorrente da expansão desordenada do meio urbano – fenômeno que provoca a carência de infraestrutura e a “periferização” dos moradores que residem nessas áreas. “Os territórios segregados socialmente em Goiânia correspondem, no geral, aos espaços de maioria negra – sejam aglomerados ou áreas de risco”, pontua o pesquisador.

Condomínios

“Com exceção dos setores como São Domingos, a região noroeste é habitada por maioria negra”. Bairros como Vitória, Floresta, São Carlos, Curitiba e Nova Esperança estão entre os principais identificados como espaços de maioria negra.

A região sudoeste tem se notabilizado por atividades do setor imobiliário. “Com esse perfil, bairros como Celina Park e Eldorado abrigam condomínios fechados, como o Residencial Granville”. Fundado em 1998, o conjunto habitacional se tornou referência na criação de condomínios em bairros periféricos. “Essa expansão imobiliária produz novas centralidades e dinâmicas na regiões vizinhas, e tende a criar espaços de maioria branca”. Outros exemplos de mesma natureza são os condomínios Alphaville e Aldeia do Vale, cuja população negra corresponde a menos de 8%.

Segundo Danilo Cardoso, os setores com condomínios são, a princípio, “espaços abertos” e, por isso, podem abrigar grupos negros de classes média e alta. Contudo, a decisão sobre onde morar é garantida apenas às pessoas mais abastadas, direito que não é assegurado aos mais pobres. “As classes baixas se restringem às áreas mais desprivilegiadas ou distantes, por um explícito impedimento econômico –  visto que as condições de ocupação apresentam menores empecilhos e que o valor da terra nesses locais é mais baixo, em relação a outros pontos da cidade”.

Segregação

Um dos bairros cuja população sofre com mais intensidade os efeitos da segregação racial é o Madre Germana II, na região sudoeste, localizado às proximidades da divisa com Aparecida de Goiânia. Criado em 1996, sob a gestão municipal de Darci Accorsi, a localidade abriga uma população de maioria negra, que “tem grandes dificuldades no acesso à educação, saúde, infraestrutura urbana e saneamento básico”.

Outro bairro constantemente atingido pelo descaso público é a Vila Finsocial, localizada na região noroeste, cujos moradores são de maioria negra e “extremamente pobres”. “Esse bairro conta com 17 mil residentes de classe baixa  – cuja maioria construiu as suas casas por conta própria”, destaca.

Na região norte, erguido sob condições semelhantes, o Residencial Vale dos Sonhos abriga indivíduos de classe baixa, apesar da vizinhança ocupada por maioria branca e de classe alta – o condomínio Aldeia do Vale. “O distanciamento social ocorre mesmo em casos de proximidade, no que diz respeito à localização”.

Mesmo com a proximidade entre espaços socialmente distintos, Danilo Cardoso pontua que os bairros periféricos são alvo constante de discursos que estigmatizam a vida e o cotidiano das comunidades mais pobres. Esses setores são frequentemente tratados pela imprensa local, e pela própria população goianiense, como locais violentos e perigosos ao convívio. Portanto, a separação que ocorre no âmbito da espacialidade é fomentada pelos discursos, que reproduzem a lógica de segregação étnico-racial nos espaços da urbanidade.

Direito

O pesquisador avalia que “o lugar social ocupado pelo negro não é o mesmo do branco, pois existem áreas de separação”. Nem sempre tal fenômeno ocorre explicitamente. Inclusive, de acordo com o estudo, há um controle sobre os discursos dos agentes sociais que reproduzem os espaços, para que exista “uma impressão de igualdade, pela qual todos têm acesso à cidadania”. Nesse sentido, “de modo geral, o discurso dominante dessas entidades não apresenta um viés racial – exceto nos produtos de publicidade, uma vez que as pessoas representadas nos anúncios tendem a ser brancas”.

O mercado imobiliário exerce uma função relevante na separação das classes médias e altas em relação às classes baixas, composta por maioria negra. “Essa segregação, além de exercer uma dinâmica que divide grupos privilegiados e subalternizados, priva muitos do chamado ‘direito à cidade’, o que influencia os conflitos e tensões movidos por questões econômicas e raciais”. O termo “direito à cidade” foi cunhado pelo sociólogo francês Henri Lefebvre em 1968, e destaca a importância do acesso aos espaços e serviços urbanos.

No Brasil, o direito à cidade é entendido com a garantia de ocupação e utilização do patrimônio público. Nesse contexto, políticas de cidadania que promovam a oferta de condições dignas para questões de moradia e mobilidade contemplam as demandas públicas pelo direito à cidade. Na legislação brasileira, o chamado “Estatuto da Cidade” (Lei 10.257/2001) estabelece normas de “ordem pública e interesse social” para regular o uso das propriedades em favorecimento do “bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”.

Danilo ressalta, no entanto, que os padrões de urbanização nos bairros de maioria negra oferecem poucos mecanismos capazes de assegurar o direito à cidade. “É explícita a dificuldade de acesso dos moradores às condições de deslocamento para o trabalho ou atividades de lazer, perdendo horas em terminais”. A pesquisa conclui que a diferenciação social produz a segregação enquanto um fenômeno de reprodução do espaço. Tendo em vista que as realidades de pobreza e cor têm caminhado juntas, o pesquisador avalia que “a diferenciação social, de base econômica, é também racial”.

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