Uma mulher em situação de rua levada por meio de condução coercitiva para que fosse realizada nela, sem seu consentimento, esterilização, foi tratada, pelo Estado, como “mero objeto processual”. Assim definiu o Instituto de Garantias Penais (IGP) ao divulgar nota de repúdio ao que passou Janaína Aparecida Aquino. “A inobservância do rito a transformou não em sujeito, mas em mero objeto processual.”
Por Ana Pompeu, do ConJur
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O caso foi relatado pelo professor Oscar Vilhena, da FGV Direito SP, em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo. Segundo ele, a história aconteceu na cidade de Mococa, em São Paulo. O juiz não fez audiência, não nomeou um defensor e não pediu documentos que mostrassem que ocorreu consentimento por parte da mulher, que tem filhos. Apenas determinou a condução coercitiva para a operação. Vilhena não revelou os nomes do juiz e do promotor, só da vítima.
“Como Janaína é pobre, vive em situação de rua, dependente química, um membro do Ministério Público entendeu que ela deveria ser esterilizada. Ela foi ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) para retirar todos os pedidos de exames agendados com essa finalidade. Foi quando o juiz ordenou a condução coercitiva. Quando o recurso do município chegou ao Tribunal de Justiça de São Paulo, a mutilação já havia ocorrido”, diz o texto de Oscar Vilhena.
“A esterilização compulsória e eugênica, como a que se faz com os animais, evoca O Processo kafkiano. Janaína K. acordou detida por pessoas que não conhece, a fim de responder a processo judicial do qual não sabe o motivo, movido por uma justiça que agora rende à clientela típica do direito penal os abusos em outras searas jurídicas”, diz a nota do IGP, assinada pelo presidente da entidade, o advogado Ticiano Figueiredo.
Ele enfatiza que, mesmo quando voluntária, o procedimento é legalmente restrito. A Lei do Planejamento Familiar dispõe, em seu art. 10, hipóteses em que a esterilização voluntária é permitida. “Nosso ordenamento jurídico repudia que a pessoa seja obrigada a se submeter à esterilização. Cirurgia invasiva desautorizada não é cirurgia: é lesão irreversível à integridade física”, apontou. No caso de Janaína, o IGP argumenta que o princípio da dignidade da pessoa humana, apesar de sua envergadura constitucional, foi sumária e sucessivamente atropelado.
O caso, de acordo com Oscar Vilhena Vieira, é escatológico. “Em primeiro lugar o promotor utilizou-se de uma ação civil pública, que é um instrumento voltado a proteção de direitos difusos, coletivos ou individuais indisponíveis, para destituir uma pessoa de seu direito à dignidade e à integridade, além de constranger o município a praticar um ato manifestamente ilegal”, observou.
Ele também manifestou perplexidade em relação ao fato do magistrado, dada a condição de vulnerabilidade de Janaina, não ter nomeado um curador especial, no caso um defensor público, que representasse os seus interesses em juízo.
Vieira ressalta como a esterilização compulsória já foi usada em outros momentos e países com finalidade de controle racial e social da população. “A esterilização coercitiva, com finalidades eugênicas e apuração da raça, foi largamente empregada pelo regime nazista. A China fez uso da esterilização coercitiva em massa para conter a natalidade. Os Estados Unidos a empregavam para punir criminosos. Mesmo no Brasil, como foi apontado por uma comissão parlamentar de inquérito, ainda em 1991, havia tolerância com políticas de esterilização coercitiva em massa, com finalidades demográficas.”
O IGP apontou, ainda, que a história pela qual foi submetida Janaína é um exemplo dentre muitos. “É de Janaínas cotidianas que se alimenta o jacobinismo togado, adubado pelo afã do Ministério Público, que assola o país. A sociedade tem amargado sucessivos desrespeitos às garantias fundamentais embaixo do próprio nariz, e sua gravidade crescente impossibilita sabermos onde esse momento crítico aterrissará”, disse.
No Supremo
Na última quinta-feira (7/6), o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, ao votar pela inconstitucionalidade das conduções em duas ações em que é relator, afirmou que o instrumento é incompatível com a Constituição Federal. Para ele, há exposição e coação arbitrárias, interferem e afrontam direitos variados, como de locomoção, de defesa, da dignidade da pessoa humana, da não autoincriminação.
As ações foram apresentadas pelo PT e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Depois do voto do relator, o julgamento foi suspenso e deve ser retomado na quarta-feira (13/6).
Leia aqui a íntegra da nota do IGP.