Há uma semana: A morte pelo vírus e a morte pelo verme

Nesta pandemia de coronavírus, as coisas mudam tão rápido que a gente perde a noção do que aconteceu ontem, antes de ontem, há uma semana. O que choca pela manhã já é notícia velha à tarde.

Pensando nisso, Opera Mundi estreou a coluna “Notícias da Semana Passada”. O texto que você lê abaixo foi escrito há uma semana e publicado só agora.

Com esse “distanciamento temporal”, procuramos mostrar o que estava ocorrendo na semana anterior e como a epidemia afetava nossas vidas. A ideia é responder: quem nós éramos na semana passada?

Hoje, publicamos o texto da socióloga Daniela Vieira:

“A terra em transe franze
Racha pela beira
Feito cabaço de freira.

Mas o Brasil ainda batuca na ladeira: Bafo, Congo, Exu, Taieira
Mais Cacique e Olodum”
(Aldir Blanc/Guinga, Baião de Lacan).

“Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história não esquecemos jamais”
(Aldir Blanc/ João Bosco, O Mestre Sala dos Mares).

São Paulo, 04 de maio de 2020.

Ao digitar a data para redação dessas linhas ou, melhor, para o desabafo de quem tem o privilégio de estar segura em casa, confesso que me espantei.

A primeira impressão foi: Já 04 de maio? Em seguida, pensei: como administrar esse tempo que corre, mas parece estar suspenso? Como lidar com essa situação vivendo num país extremamente desigual, em que grupos sociais mais vulneráveis têm pago com a vida essa conta?

Não sei como acontece com vocês, mas rola um empurra e puxa entre consciência coletiva e individual que é um “troço de doido”. Parece que, às vezes, elas precisam se equilibrar – até para que se consiga sobreviver. Mas essa luta é diária, e os sentimentos que ela traz eram até então inimagináveis. Num dia, pulsão de vida gritando forte, coração a ponto de pular da boca, uma energia que não sei de onde vem… noutro dia, esse mesmo peito experimenta uma tristeza e um desalento descomunal. A certeza de que deveremos reaprender assusta e traz incômodo. As “valas comuns” não têm nada de solidárias, apenas exprimem a desgraça da realidade social monstruosa. Mas uma coisa é certa: não tenho medo de olhar para dentro e descobrir os demônios. Já olhar para o mundo tem sido tarefa de alguns anos… mas confesso que ele nunca esteve tão desordenado quanto agora, na minha experiência, claro, de quem nasceu na redemocratização, viu a implantação das políticas afirmativas, experienciou a possibilidade de financiamento público para estudar no país e fora dele, assistiu à expansão das universidades.

Mas, desde que a quarentena começou no Brasil, me parece que estamos dentro de um esquema genocida do “salve-se quem puder”. O aumento no número de infectados, que hoje chegou a 105.222 casos notificados, revela tanto a falta de precisa assistência do Estado – sem medidas político-institucionais efetivas a ponto de manterem todas e todos em suas casas – quanto a falta de consciência coletiva das pessoas com relação à doença.

A situação tem gerado um estado de pânico e revolta e, junto a isso, tenho visto e sentido uma avalanche enorme de informações, reclamações, eventos, dicas, lives etc etc. As programações ocorrem infinitas nesse mundo digital que, mais do que nunca, tem dado régua e compasso para a nossa “sociabilidade”. Em meio ao crescimento das mortes, cujos dados oficiais hoje somaram 7.288, sem contar os casos subnotificados, vêm crescendo em nossas redes sociais o desespero, o ódio, a indignação diante de uma pandemia mundial que poderia, mas infelizmente não é, ser contada dentro de uma narrativa ficcional.

Dado que cada indivíduo se protege de maneiras distintas diante da tragédia do real, esses meses de isolamento – já se vão aí quase dois – têm trazido uma infinidade de coisas para serem feitas durante a quarentena. Diversas empresas, instituições, bibliotecas, centros culturais, museus, têm liberado conteúdo na internet, seja de filmes, palestras, cursos, livros, a fim de que o isolado e a isolada se entretenham em tempos de peste. No caso brasileiro, dupla peste: a do vírus e a do presidente (verme).

Mas essa dinâmica tem se tornado cansativa! É muita informação, são muitos eventos, são muitas lives, é uma mistura frenética de autopromoção e aquele velho ditado de que “a vida precisa continuar”. Será mesmo que precisa, nesses moldes?

Por isso me questiono se esse turbilhão de possível “entretenimento virtual” não acaba por nos desvirtuar ainda mais. Se isso não retira a possibilidade de nos conectar com a gente mesmo, com a família, com as plantas, com a comida, com o sexo bem feito, enfim, seja lá o que for. Mas de efetivamente nos conectar com algo que não seja fugaz, que não seja a invasão da tecnologia a todo momento dizendo para você ficar ligado. Isso cansa, consome, cria falsas demandas, gera ansiedade, desloca a energia para outros pontos. A criação de falsas demandas que esse momento está impondo me parece maior do que aquelas já postas antes da pandemia pelo capitalismo neoliberal. É como se tivéssemos “tempo livre” e, agora, vale tudo para fugir ou camuflar o terror político e social.

O fato é que essa nova dinâmica que pegou o mundo de surpresa. Quem diria que em pleno século XXI estaríamos trancafiados em casa (repito, quem pode estar) com medo de um vírus? Nem os surrealistas teriam tamanha “criatividade”.

Mas essa nova dinâmica sócio e espaço-temporal, ou melhor, a intensidade que essa dinâmica tem ganhado, é atordoante. E isso gera confusão e frustração. A probabilidade da morte, em um país em que o sistema de saúde público é frágil e o “ovo da serpente” já nasceu e se reproduz, nos transtorna.

Tenho estado confusa, talvez como a maioria! Só hoje percebi que tinha me esquecido de pagar o condomínio e também não estava certa se havia pagado as contas do mês passado, fui checar! Mas quase com a certeza de que realmente havia deixado coisas para trás. Acordei na expectativa da pseudofelicidade, tentando preencher o fajuto “tempo livre” para não enlouquecer. Vamos começar bem a semana, então, “bora fazer o dia render”, “vamos reverenciar o sol”, “vou fazer ginástica”, “fichar um livro”, “estudar francês”. Enfim, planejei o dia a fim de me desconectar do mundo – desse mundo maldito. Autoproteção, confesso. Mas quem disse que dou conta de viver dentro de mim, com o cheiro de cadáver me perseguindo pela casa?

Dito e feito: dos 263 novos óbitos pelo coronavírus confirmados pelo Ministério da Saúde, um aumento de 4% com relação ao dia anterior, um teve nome, cor, profissão, família. Ora, deixou de ser somente estatística!

O compositor e cronista carioca Aldir Blanc nos deixava, vítima do coronavírus. Junto com a confusão das contas não pagas, e a tentativa frustrada de “bora começar bem a semana”, acordo com a notícia da sua morte. Mas admito que, ao saber do seu falecimento, tentei congelar os sentimentos, e a memória recente – embora pareça já tão longe – me conduzia igualmente para as tantas outras mortes “sem nomes”, para as estatísticas, para a imagem da abertura das valas comuns no cemitério de Manaus, ao desespero das famílias, para o cheiro podre desses cadáveres me acompanhando. Mas ainda insistia em “congelar” os sentimentos e pensava: “calma, já há mais de 7.000 mortes pela covid-19 neste país, infelizmente foi alguém que você ‘conhecia’, mas, calma, outras virão, é preciso ser forte”.

Contudo, em menos de 3 horas, outra bomba: a morte do ator Flávio Migliaccio, que fora encontrado morto no seu sítio em Rio Bonito. Flávio não foi levado pelo vírus, mas pelo verme. Pesou demais a vida. E como tem pesado, hein, camarada?

Essas duas mortes, uma pelo vírus e a outra pelo verme, que chocaram parte do país hoje (digamos que, pelo menos, a ala progressista que um dia acreditou “na esperança equilibrista”), sintetizam muito bem a crise política e a crise causada pela pandemia no Brasil. Tanto que nenhuma nota foi emitida pela secretária de Cultura do país, por possível medo de sofrer sanções ideológicas e/ou por escolha própria de não tomar partido – ainda que o partido já tenha sido tomado pela sua inação. A que ponto chegamos!

A passagem de Blanc e Migliaccio revelaram numa só paulada o duplo nó que estamos enfrentando no tempo presente que, de certa forma, nos diferencia dos outros países, os quais estão lutando “apenas” contra o vírus.

“Meu coração tropical está coberto de neve”, por isso, a necessidade de lutar coletivamente por um sistema de saúde público que possa atender a todas e a todos e, da mesma maneira, um alerta para vislumbramos a possibilidade de um amanhã, de um vir a ser. “Cuidem de nossas crianças”, alertou Migliaccio, pois a “humanidade não deu certo”. Tudo indica que ele tenha razão, mas eu não gostaria de acreditar.

Viver momentos históricos é realmente perturbador, “mas o Brasil ainda batuca na ladeira”! Tomara!

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