Higiene mental

Assisti à temporada inteira de uma série sobre casas extraordinárias, empenhada em descansar minha mente das agruras da vida no Rio

por Flávia Oliveira no Globo

Era tanto luto que, em fuga, liguei a TV. Buscava a higiene mental. Era com essa expressão, lembro agora, que, a vida toda, minha mãe se referiu ao mar. “Ir à praia é uma higiene mental”, ela dizia. A noite caíra, eu estava em casa e liguei a TV. Parei numa série britânica sobre casas extraordinárias. Organizado em quatro episódios, o programa visitava construções na Europa, na Nova Zelândia, nos EUA e no Canadá. Os apresentadores, um arquiteto e uma ex-atriz transformada em corretora, exibiam projetos tão inovadores quanto inusitados, seja pela localização, seja pelos materiais utilizados ou pelas exigências ambientais, que só não inviabilizavam financeiramente as empreitadas, porque dinheiro, ali, era detalhe. Uma casa ficava no alto de uma montanha nos Alpes alcançável só por teleférico. Outra foi erguida numa ilhota norueguesa inacessível nos meses de frio — ou seja, metade do ano. Em dois imóveis, os donos tiveram de abrir estrada, porque não havia pista até o terreno; uma delas, a canadense, pertencia a um casal de brasileiros.

Eu assisti à temporada inteira naquela noite de sábado, empenhada em descansar minha mente das agruras da vida no Rio de Janeiro, no Brasil de 2018. Em outra série ouvira algo sobre o quanto pode ser revolucionário o lazer para os que fazem da vida o ativismo. “É sábado. A revolução pode esperar”, disse a protagonista ao amigo ultramilitante. No texto que Sueli Carneiro, referência de todas nós, me enviou sobre autocuidado como estratégia política, as autoras narram um episódio atribuído à anarquista Emma Goldman (1869-1940). Repreendida por dançar num baile, ela rebateu o companheiro: “Se eu não puder dançar, não é a minha revolução”.

Eu me permiti não pensar que todos os donos das casas maravilhosas da série de TV eram brancos. E que nenhuma delas ficava em países em desenvolvimento. Um episódio inteiro era sobre construções em montanhas de paisagem preservada. Os arquitetos, então, se esforçavam para camuflar suas criações sob o verde exuberante. Evitei refletir sobre o que ricos e pobres fizemos com a Mata Atlântica carioca. Tampouco me ocupei da penca de casarões encravados na encosta vizinha à Praia de Geribá, em Búzios (RJ).

Em vez disso, reparei que, das 16 casas exibidas no programa, apenas uma tinha muitos quartos, nove ao todo. Ficava escondida numa montanha da Grécia com o pôr do sol mais lindo do mundo. A maioria dos outros imóveis tinha dois ou três quartos. Eram projetos de milhões de dólares ou euros em áreas de cem, duzentos metros quadrados, incompatíveis com o que, por aqui, chamamos de mansões. Fiquei pensando que um bom jeito de desfrutar em paz uma casa de praia ou de campo é construí-la com poucos quartos. É a receita espanta-hóspedes.

A cobertura de uma casa numa montanha da Califórnia foi feita com duas asas e uma cauda de avião, retiradas de um cemitério de aeronaves no deserto e levadas ao terreno de helicóptero. O contrato previa que, se uma rajada inesperada de vento pusesse a tripulação em risco, o piloto se livraria da asa. Vista de cima, a casa poderia ser confundida com um desastre aéreo. Assim, a construção foi submetida a 15 agências do governo americano.

Outra casa, erguida no meio de uma floresta nativa, tinha geometria complexa para caber nos espaços entre as árvores, porque nenhuma podia ser derrubada. Um imóvel foi escavado numa montanha para preservar um velho celeiro que o antigo dono não aceitava ver demolido e, por isso, recusara várias ofertas de compra. A solução foi cavar um túnel e abrir a casa no lado oposto do morro, como uma caverna. Quando a obra ficou pronta, um terço dos moradores da vila suíça de mil habitantes foi visitar o lugar.

Estava feita a minha higiene mental.

Leia mais: https://oglobo.globo.com/sociedade/higiene-mental-22606791#ixzz5DENt2A2A
stest

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