‘História do racismo na USP coincide com a história da USP’, diz professor

FONTEPor Juliana Domingos de Lima, de ECOA
Professores e estudantes de coletivos negros protestam em frente à reitoria da USP (Foto: Adusp/Divulgação)

Na manhã de 9 de novembro de 2022, um grupo de professores negros da Universidade de São Paulo (USP) foi recebido pelo reitor em seu gabinete, no campus Butantã, zona oeste da capital.

O encontro era muito aguardado: Eles estavam ali para entregar à autoridade máxima da instituição uma carta elaborada ao longo de meses, reivindicando cotas para pessoas negras e indígenas nos concursos de professores, e um abaixo-assinado com mais de mil assinaturas em apoio.

Mas ir à reitoria para formalizar essa demanda inédita na USP não foi o que mais emocionou o professor Celso Oliveira.

Integrante do Grupo de Docentes Negras e Negros da USP e da Associação dos Docentes da USP (Adusp), ele chorou quando saiu do prédio e encontrou dezenas de estudantes, de maioria negra, com faixas e palavras de ordem em apoio à pauta dos professores.

Os alunos tinham passado a maior parte da manhã ali, debaixo de um “sol de lascar”, tentando fazer barulho como podiam. “Eu me arrepio só de lembrar. Quando a gente olha na carinha deles, é lá que está a esperança”, diz Celso Oliveira a Ecoa.

Grupo de professores entregou documentos referentes à proposta de reserva de vagas ao reitor (Foto: Adusp/Divulgação)

Filho de uma militante do movimento negro e professor da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP há 17 anos, Celso tem sido um “facilitador” (termo que prefere em relação a líder) na articulação do grupo de professores negros por ações afirmativas na docência.

Negros são 2% dos docentes da USP

Atualmente, na USP, há apenas 125 pretos e pardos em um total de mais de 5.531 professores, o que equivale a 2,3% do total.

O coletivo de docentes negras e negros da universidade surgiu às vésperas das eleições para reitor realizadas no fim de 2021. Duas chapas concorriam com propostas distintas em relação a ações afirmativas e professores negros se organizaram para pautar suas expectativas em relação à nova administração.

Esse primeiro grupo se desfez, mas o contato entre professores negros de diferentes áreas da USP ficou.

“Para mim foi uma emoção poder começar a dialogar com os colegas”, diz Eunice Prudente, primeira e única professora negra da Faculdade de Direito da USP. “A gente viu o quanto temos em comum, as dificuldades no concurso de ingresso da USP e na progressão da carreira”.

A professora Eunice Prudente foi a primeira professora negra da Faculdade de Direito da USP (Foto: Arquivo Pessoal)

A origem social era outro fator semelhante entre muitos desses professores. “Somos de famílias de trabalhadores. Foi muito difícil nos manter na universidade”, completa Eunice.

Eleita, a chapa composta pelo reitor Carlos Gilberto Carlotti Júnior e pela vice Maria Arminda do Nascimento Arruda – ambos brancos -, concretizou em maio de 2022 a promessa de campanha de criar um órgão para centralizar as ações ligadas às políticas afirmativas e de permanência, a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento.

Foi por volta dessa época que os professores voltaram a se articular para reivindicar ações afirmativas na admissão dos docentes.

A proposta do grupo é que todos os concursos de docência tenham reservas de vagas até a inclusão de, no mínimo, 37% de professores pretos, pardos ou indígenas nas unidades. A porcentagem corresponde à população negra do estado.

As ‘resistências’ contra a proposta

“O movimento negro organizado sempre existiu dentro da USP”, diz o professor Celso Oliveira. “Nossos pleitos sempre foram legítimos. O que estamos fazendo agora é organizar esses esforços num momento histórico que nos permite diminuir as resistências contra eles”.

Essas “resistências” são argumentos contrários à reserva de vagas na docência que os professores ouvem há anos e apontam como falaciosos. “São uma forma de encobrir o racismo”, diz Celso. “A história do racismo na USP coincide com a própria história da USP”.

Professor Celso Oliveira posa ao lado de foto da escritora Carolina Maria de Jesus (Foto: Arquivo Pessoal)

Um primeiro impedimento seria a inexistência de uma lei estadual que respalde essa política. Mas, de acordo com um parecer jurídico elaborado pela professora Eunice Prudente, a autonomia universitária prevista na constituição permite que a USP implemente ações afirmativas que não estão na lei.

Outro argumento rebatido pelos professores é o de que faltariam candidatos negros para serem contemplados pela reserva de vagas nos concursos da USP. “Depois de dez anos da Lei de Cotas, não tem motivo para crer de antemão que não vão existir pessoas negras aptas”, rebate Celso.

Racismo emperra ingresso de docentes

Em relação a outras universidades do país, a falta de diversidade do corpo docente da USP está longe de ser exceção.

Segundo um levantamento feito pelo Estadão, menos de 3% das instituições de ensino superior brasileiras têm um número de professores negros que espelha a distribuição racial da região.

“Apesar da existência de pessoas negras capacitadas, a contratação nos concursos não vem ocorrendo. Isso demonstra que existe um racismo na forma como se estrutura o ingresso dos docentes nas universidades brasileiras”, afirma Celso Oliveira.

Essa defasagem na contratação de professores negros é reconhecida pela pró-reitora de Pertencimento e Inclusão da USP, Ana Lanna. “Sabemos que [os candidatos] existem. A gente sabe que tem que melhorar, 2% não dá”, diz a Ecoa.

Apesar disso, ela afirma não ter ainda um posicionamento institucional definido sobre a proposta de reserva de vagas.

O grupo também reivindica um incentivo à progressão na carreira para esses profissionais. Praticamente não há negros entre titulares e são eles que podem concorrer a cargos de decisão, como o de reitor.

‘A mesma luta em estágios diferentes da vida’

O ato realizado por estudantes em apoio aos professores, que ocorreu no fim de 2022, foi organizado pelo Malungo, coletivo negro da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

“Foi um momento muito simbólico, de unificação de forças”, diz a Ecoa Felipe Leonidas, estudante e membro do Malungo. “A gente se reuniu numa roda grande pra conversar e teve muito esse reconhecimento da mesma luta em estágios diferentes da vida. Foi muito bonito”.

Os grupos criados por alunos negros se multiplicaram desde 2017, quando a USP adotou cotas sociais e raciais na graduação. A medida mudou a “cara” da universidade: entre 2010 e 2019, o número de estudantes autodeclarados pretos, pardos ou indígenas quadruplicou, de acordo com dados consolidados pela Globo.

Apesar de ter sido o berço do debate sobre cotas raciais no país, a USP foi, ao lado da Unicamp, uma das últimas grandes universidades públicas brasileiras a adotar a reserva de vagas para pretos, pardos e indígenas na graduação.

Na centenária Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a primeira turma com cotistas concluiu o curso no fim de 2022.

“A Faculdade de Direito da USP já é diferente. Há muitas questões que são agora mais discutidas porque os negros estão lá”, diz a professora Eunice Prudente, que se graduou entre 1968 e 1972, quando não havia nenhum docente e poucos colegas negros na São Francisco.

Primeira turma de alunos cotistas formados pela Faculdade de Direito da USP, em 2023 (Foto: Divulgação/Centro Acadêmico XI de Agosto)

Para Felipe Leonidas, ter professores não brancos impacta o horizonte de possibilidades de alunos como ele: “Traz uma noção de que a gente pode alcançar aquele lugar também”.

Em todas as áreas do conhecimento a USP vai se desenvolver com a presença de mais professores negros. Vai se tornar muito melhor”

Eunice Prudente, professora da Faculdade de Direito da USP

‘Única coisa dada de graça foi chibatada’

Depois de ser formalizada com a entrega da carta ao reitor no fim de 2022, a proposta de reserva de vagas precisa ser votada pelo Conselho Universitário (CO), principal órgão deliberativo da universidade.

Segundo a Pró-Reitora de Pertencimento e Inclusão Ana Lanna, a mobilização dos coletivos negros nesse tema levou a Procuradoria Geral da universidade a cobrar uma resposta da Prip.

O órgão abriu um processo de consulta à comunidade para coletar informações e propostas que serão discutidas em 9 de abril, mas não tem poder de decisão sobre o assunto.

Enquanto esperam que a medida seja pautada no CO, professores e estudantes têm se movimentado para levar o debate para as unidades. “A ideia é que a gente consiga construir esse apoio político a partir das bases”, diz a Ecoa o estudante Felipe Leonidas.

Na FAU, a reserva de vagas para docentes PPI já foi aprovada pela congregação. “A gente está tentando exportar essa vitória para outras unidades da USP, mas há resistência e mais do que isso, inação”, afirma Leonidas.

Para o coletivo de professores negros não há argumentação válida para rejeitar a proposta.

Os sorrisos na entrega dos documentos e os tapinhas nas costas existem, mas não há movimentação que não nasça da nossa própria iniciativa. Ao negro no Brasil, a única coisa dada de graça foi chibatada nas costas. Todo o resto foi conquista. Nesse tema não será diferente.

Celso Oliveira, professor
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