Holofotes para Bruno, condenado por assassinato de Eliza Samudio, banalizam feminicídio, dizem jornalistas

Para Juliana Arreguy, do site Dibradoras, jogador ‘merece uma segunda chance, prevista por lei’, mas ao ser tratado como ídolo, ‘quantos outros não se acharão impunes para agredir suas parceiras?’

Por Felipe Mascari, do Opera Mundi

O goleiro Bruno Fernandes de Souza foi apresentado nesta terça-feira (14/03) como reforço do Boa Esporte, de Varginha (MG), que atua na série C do campeonato brasileiro. A contratação do goleiro, condenado por participar do sequestro e assassinato da modelo Eliza Samudio em 2010, criou polêmica: uma parcela da sociedade acredita que o jogador merece nova chance, depois de ganhar liberdade por ter conseguido um habeas corpus, enquanto outra pede boicote ao clube.

Ainda que os patrocinadores tenham abandonado o clube por esse episódio, a associação ao nome do goleiro está projetando o Boa Esporte na mídia nacional. Para a jornalista Juliana Arreguy, do site Dibradoras, “Bruno merece uma segunda chance, prevista por lei, e que deveria ser regra entre todos os egressos (do sistema prisional)”. Mas o que preocupa, acrescenta, é o destaque dado ao seu retorno ao futebol. “Num país em que a violência doméstica e o feminicídio são banalizados, deixar que o goleiro ocupe um posto de evidência é problemático”, afirma.

Bruno Fernandes (centro) durante entrevista coletiva ao ser apresentado como reforço do Boa Esporte, de Varginha (MG)

Segundo o advogado de Bruno, Lúcio Adolfo da Silva, nove clubes fizeram proposta pelo goleiro. Juliana questiona a importância dada pelos times para a ressocialização do atleta, ao mesmo tempo em que viram as costas para outros ex-detentos. “Se nossos clubes tivessem uma preocupação mínima com a situação dos egressos no país, poderíamos falar em ressocialização. Mas quantas vezes as equipes se preocuparam em empregar alguém que já passou pelo presídio? Por que a ressocialização de Bruno é tratada com tanta importância diante das outras?”

Nas redes sociais, torcedores de diversos times pedem o boicote ao Boa Esporte. Alguns, até incentivam que o goleiro seja “linchado” verbalmente durante as partidas que disputar. A jornalista Natália Martino, integrante do Projeto Voz (conjunto de iniciativas nas áreas de educação e comunicação desenvolvidas em unidades prisionais), critica o comportamento “punitivo” da sociedade. “Nosso sistema penal diz que as pessoas podem ter outras chances. Não é um sistema de vingança, é o da ressocialização. Se tivermos que voltar ao tempo em que as pessoas que cometeram crimes têm que sofrer, então voltaremos à tortura em praça pública.”

Mas Natália também comenta a facilidade com que o goleiro conseguiu a “segunda chance” e critica a falta de espaço para outros. “O problema é o Bruno voltar a trabalhar? Não. O problema é quem voltar à sociedade e não trabalhar, não conseguir se reinserir. Nosso sistema diz que não tem prisão perpétua, mas tem um atestado que praticamente impossibilita  a elas voltar porque não tem oportunidades. No caso do Bruno, ele tem o talento com futebol, mas tem o problema em ocupar um espaço de ídolo.”

Bruno foi acusado de ser o mandante do sequestro e assassinato da ex-namorada Eliza Samudio. Ele estava havia seis anos e sete meses preso, sem ser julgado em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. No último dia 23, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), considerou que o jogador tem direito a esperar o julgamento em liberdade e concedeu habeas corpus.

Natália vê uma situação de “falência” do sistema judiciário brasileiro e diz que nem todos os presos, ainda que nas mesmas condições, têm a mesma chance de Bruno. “Ele ainda não foi julgado, então juridicamente não devia estar lá. Há um problema no nosso sistema, porque usar esse tipo de recurso é caro e a população carcerária não tem saúde financeira para isso. Então, a gente nega a mesma defesa para a maioria da população carcerária”, avalia. “A gente precisa ser coerente. Se defendemos que a população carcerária seja tratada com dignidade e com direito de defesa, não podemos negar isso a nenhum preso”, acrescenta.

Marketing falho

O Boa Esporte contratou Bruno para atrair mídia e marketing para o clube. Entretanto, nos últimos dias, depois do anúncio, cinco patrocinadores já abandonaram o time mineiro, inclusive o principal e a fornecedora de material esportivo: o Grupo Góis & Silva, além de Kanxa, Cardiocenter Varginha, Magsul Ressonância Magnética e Nutrends Nutrition.

Em nota, o Boa afirmou que está “apenas cumprindo sua obrigação social”. “A ação teria sido mais efetiva se o clube liderasse um movimento pelos egressos do país, e não apenas Bruno”, observa Juliana. “Um clube que pensa em contratá-lo visando ao marketing não se importa com a mensagem que passa a seus torcedores. É como se defendêssemos que é normal abandonar um filho e matar uma mulher.”

Ela também acredita que o clube não pensou nas próprias torcedoras e funcionárias e se mostrou conivente com a violência doméstica e o feminicídio. “Por mais que Bruno, em si, possa não ser mais uma ameaça, o clube sinaliza que não se importa com a segurança doméstica de tantas mulheres que fazem parte do seu dia a dia.”

Feminicídio

Juliana, do Dibradoras, também critica a forma com que Bruno foi recebido pelos fãs e lembra do torcedor com uma máscara de cachorro – em referência à morte de Eliza, que supostamente teve os ossos jogados para cachorros – ao cumprimentar o goleiro. Para a jornalista, isso reforça que a sociedade banaliza a violência de gênero. “Temos parlamentares retrógrados e um presidente conservador. Essas atitudes mostram como as pessoas não se importam que uma mulher tenha sido assassinada, porque um pai não queria pagar a pensão do filho.”

“Muita gente relativiza o feminicídio. Não entende que existe uma violência específica de gênero e defende que ‘violência é violência’, independentemente da vítima. Os crimes tratados como passionais pela mídia são, na verdade, crimes contra a mulher e há cada vez mais estudos e números que comprovam isso”, acrescenta.

Ela também critica o tratamento da mídia sobre o caso. Segundo ela, ao noticiar a soltura ou a contratação, o crime não é mencionado. “Considero isso uma forma de violência velada. As declarações de Bruno também foram replicadas tratando-o como vítima. Bruno não é e nunca foi vítima. Tratá-lo como vítima é desrespeitoso e muito perigoso – quantos outros não se acharão impunes para agredir suas parceiras? É trocar o papel do agressor com o papel da vítima.”

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