Imagens da Escravidão: Emancipação, inclusão e exclusão

por Lilia Schwarcz, Maria Helena Machado e Sergio Burgi

O registro fotográfico feito sobre negros – livres, escravizados ou libertos – no Brasil é pautado por duas especificidades. De um lado a fotografia entrou cedo no país, contando, já nos finais dos anos 1860, com clientela certa, que dentre outros incluía o imperador d. Pedro II; ele próprio um imperador fotógrafo. De outro lado a escravidão tardou demais a acabar, guardando ao Brasil a triste marca de ser o último país do Ocidente a admitir tal tipo de sistema. Dessa confluência, em certo sentido perversa, resultou um registro amplo e variado desse sistema de trabalho e de seus trabalhadores escravizados. Por vezes tomados ao acaso, por vezes figurando como modelos exóticos ou tipos para a análise da ciência; ora como parte do cenário, ora como figuras principais, escravizados foram flagradas nas mais diversas situações.

Num momento em que a captura da imagem realizava-se através de um processo mais complexo e lento, devido às próprias limitações da técnica, vários fotógrafos que entraram no país construíram uma representação com forte elaboração estética e formal: os trópicos, a natureza e seus habitantes foram registrados em câmeras de grande formato sobre tripés, que aproximam o resultado da imagem fotográfica do período aos padrões da pintura de cavalete. A natureza do Brasil – com suas grandes cascatas, florestas virgens, mar profundo e paisagens edênicas – adquire caráter icônico e onírico, quase idealizado, assim como, de alguma maneira, seus nativos.

E se a operação de converter os indígenas em “objeto de estúdio” fazia parte dos cânones românticos de época, mais difícil era captar o dia a dia da escravidão e do trabalho forçado. Grande contradição do Império brasileiro, o sistema escravista foi abordado por diversos fotógrafos, autônomos ou apoiados pela Coroa, que em sua maioria voltavam-se para o retrato de tipos exóticos; aliás tema de grande interesse de viajantes e estrangeiros.

Particularmente nos anos 1870 e 1880 proliferaram as fotos de escravizados, revelando, por sua regularidade, de que maneira o sistema andava naturalizado entre nós e disperso por todo país. Negros figurariam em cartes de visites – como um suvenir da terra – mas também nos documentos científicos – nesse caso comprovando uma suposta inferioridade racial do país. Estariam também presentes nas fotografias de paisagem e na documentação do trabalho nas fazendas de café realizadas tanto por Victor Frond nos anos de 1859 e 1860, como por George Leuzinger por volta de 1860, e Marc Ferrez na década de 1880. Em todos esses casos vemos a montagem da representação naturalizada da escravidão: tudo em seu lugar.

Essas imagens retratam o trabalho escravo, feitorizado e generalizado a partir do sistema cafeeiro do Sudeste do país, construindo uma representação a serviço principalmente da valorização dos aspectos de organização da produção e do trabalho na economia do café. Apesar disso, parte destas imagens, como por exemplo as de autoria de Marc Ferrez, também denunciam a precariedade da vida da população submetida ao sistema escravista, baseado em formas de organização e técnicas de trabalho sugeridas como arcaicas. Ferramentas e carros de boi que denotam muito uso e pouco cuidado, escravos vestidos em andrajos, filas de trabalhadores que carecem de uma ordem visível e onde se vê homens, mulheres e crianças amontoados, são todos aspectos que flagram a penúria do sistema no ocaso da escravidão.

Em contraponto, nas cidades os fotógrafos do século XIX encontraram os motivos e características de uma escravidão urbana, caracterizada pelos trabalhos de rua, com a presença de figuras urbanas marcantes como as de carregadores, vendeiras e barbeiros – libertos ou cativos. Mais uma vez, a forma precisa e estetizada se fazia presente nos cestos bem montados, nas vendeiras dispostas de maneira equilibrada e com panos das costas detalhadamente expostos, nos carregadores de liteiras bem postados. Aí estava novamente o espetáculo de uma escravidão pacífica e sem contestação. No entanto, essas fotos urbanas denunciam igualmente precariedade, indisciplina e certa ausência de controle do trabalho escravo nas cidades.

É como se os fotógrafos, em boa parte estrangeiros e a par das críticas ao sistema escravista, buscassem com estas imagens fazer eco às ideias que circulavam, neste momento, nos círculos letrados e humanistas, a respeito da urgência de o país superar tal sistema escravista. Com suas fotos eles parecem reforçar, ainda, uma ideia que, na década de 1880, os movimentos abolicionistas já haviam tornado consensual: a de que a escravidão no Brasil significava o atraso, a opressão e obstáculo à modernização e que os escravizados representavam uma parcela da humanidade que precisava ser redimida, educada e tutelada.

Entretanto, é a partir de uma atenção aos detalhes que os negativos fotográficos registraram, que podemos vislumbrar muitos momentos e ângulos de autonomia e de vontade própria por parte dos fotografados, possibilitando uma leitura a contrapelo ao sentido geral das imagens. Isto porque, como técnica, a fotografia representava uma espécie de redenção da superfície material, oferecendo um tipo de informação do real que não poderia ser encontrada em outros tipos de suportes. No entanto, no miúdo, um outro mundo se revela, com os escravizados negociando e agenciando todo tipo de reação: ironia, humilhação, constrangimento, revolta. O fato é que a possibilidade atual de ampliar os negativos permitiu que trouxéssemos à tona o registro de detalhes de primeiro e de segundo planos. Se antes o espectador só podia ver a cena como um conjunto de motivos principais explícitos, e de detalhes mais ou menos invisíveis, hoje, com as novas técnicas é possível buscar ângulos recônditos das fotografias, muitas vezes desconhecidos pelo próprio artista que registrou a cena. Diferente da pintura, na fotografia se materializa um processo distinto de captura da individualidade da cena, com seu acaso, revelando a própria impossibilidade de o fotógrafo dominar totalmente a construção da representação. É nesse momento que o artista-fotógrafo perde o controle sobre seu produto.

Embora o fotógrafo do XIX não pudesse revelar suas fotos em proporção mais ampliada, o negativo que ele nos legou permite, e é esse o convite que fazemos nessa exposição. A partir de recortes das imagens, vemos gestos e olhares que conferem singularidade aos indivíduos fotografados, fossem eles escravizados, libertandos ou libertos, registrados pelo fotógrafo: uma mãe que acalma seu filho, um trabalhador que desvia o olhar, uma quitandeira com expressão melancólica, um feitor buscando guardar a ordem, um cachorro que passeia tranquilo e alheio, um rapaz que descansa na relva e escapa da ordem, dois homens negros que conversam relaxados, um escravizado que rouba a cena e, ao invés de carregar a liteira, põe a mão na cintura e encara o fotógrafo. Aí estão reações que escapam ao controle: gestos do trabalho, gestos de descanso e de sociabilidade , expressos também nas mãos, nas posturas, no encurvamento do corpo, na forma como se segura a enxada ou se carrega os filhos às costas. São estes elementos de informação visual e documental que a fotografia histórica nos oferece que contribuirão possívelmente para uma leitura ampliada da escravidão em seus anos finais no país, oferecendo janelas para que possamos vislumbrar, em olhares e gestos daqueles que o fotógrafo supôs passivos, os mundos desconhecidos da escravidão e do processo de tornar-se livre em curso nas décadas finais de vigência da escravidão no Brasil.

Essa mostra faz parte de um projeto maior realizado em outubro de 2013 na Universidade de São Paulo, no escopo das atividades que comporão o seminário “Emancipações, Inclusão e Exclusão. Desafios do Passado e do Presente”, e pretende contribuir para o tema geral do seminário a partir das imagens fotográficas que registram a escravidão e seus desdobramentos no país.

Revista Brasileiros

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