Imagens da “Mãe Preta”: modernismo brasileiro e cultura antirracista

Em 28 de setembro de 1929, Ascendino dos Anjos e outros integrantes negros do Centro Operário da Bahia realizaram em Salvador uma longa programação em homenagem ao dia da Mãe Preta. O evento respondia à proposta de tornar esse dia feriado, defendida desde o ano anterior pelo jornal da imprensa negra O Clarim, que divulgou com entusiasmo o evento na capital baiana. Tratava-se de aproximar a memória da Lei do Ventre Livre, assinada em 1871, com a cultura antirracista que circulava naquele momento entre organizações negras. 

Entre as atividades do evento, houve um desfile no centro de Salvador, em que os integrantes do Centro Operário exibiam um estandarte com a imagem de uma mulher negra amamentando uma criança branca, enquanto observava de forma melancólica seu próprio bebê, que jazia desamparado no chão. A imagem era uma cópia da tela “Mãe Preta” (1912) do pintor branco Lucílio de Albuquerque, realizada pelo pintor também branco Presciliano Silva, então professor da Escola de Belas Artes da Bahia. 

“Mãe Preta”. Lucílio de Albuquerque, 1912. óleo sobre tela. (Fonte: Acervo do Museu de Arte da Bahia)

Quando Albuquerque produziu a tela, dificilmente ele imaginava o sentido emancipatório que ela viria assumir futuramente. “Mãe Preta” foi pintada logo após o retorno de Albuquerque para o Rio de Janeiro em 1911, depois de viver cinco anos em Paris. Sua estadia havia sido financiada pelo prêmio viagem da Escola Nacional de Belas (ENBA). De volta ao Brasil, ele assumiu a cadeira de desenho figurativo da ENBA e realizou uma grande exposição com a produção que fez no exterior. 

O retorno de Albuquerque coincidiu com um fato bastante significativo na relação entre pintura e política racial. No mesmo ano, João Batista de Lacerda, então diretor do Museu Nacional, havia utilizado a tela “A Redenção de Cam” (1895), do pintor branco Modesto Brocos, para ilustrar sua comunicação sobre suas projeções de branqueamento da população brasileira no Congresso Internacional das Raças em Londres, consolidando a associação da tela com suas teses. Ao pintar “Mãe Preta” em 1912, Albuquerque dialogava com problemas também caros à ciência eugênica. Os personagens do quadro dividem o canto escuro de uma construção sem qualquer móvel. Os três vestem roupas que deixam seus corpos expostos ao contato com outras superfícies. Detalhes certamente informados pelas teses de médicos higienistas que, desde as últimas décadas do século XIX, associavam os corpos das amas-de-leite negras a ideias ligadas a vícios morais e doenças, como bem analisou Taina Silva Santos no número anterior dessa coluna. 

A trajetória da tela até sua ressignificação e apoteose na Bahia se desdobra nos anos seguintes. Em 1921, Albuquerque tentou vendê-la para o Museu Nacional, recebendo a recusa do seu diretor, Edgard Roquette-Pinto, que diz não ter visto nela qualquer valor do que ele considerava etnográfico. Em 1925, a tela foi comprada pelo Museu do Estado da Bahia (hoje, Museu de Arte da Bahia), onde Presciliano Silva viria a fazer a cópia do Centro Operário. Não sabermos a posição do pintor sobre os caminhos que a obra assumiu, rastreados por Kimberly Cleeveland. Contudo, um dado que pude localizar chama a atenção. Em 1934, a pintora branca Georgina de Albuquerque, esposa de Licínio, enviou uma correspondência a José Valladares, então diretor do Museu da Bahia. Nela, a pintora compartilha sua insatisfação diante da cópia depositada na instituição.  

“Bahia”. Wilson Tibério. 1946. óleo sobre tela. Fonte: Acervo da Pinacoteca Aldo Locatelli – Porto Alegre.

É pouco provável que o pintor negro gaúcho Wilson Tibério não tenha contemplado a original ou a cópia de “Mãe Preta” no Museu do Estado da Bahia em sua passagem por Salvador em 1946. A manifesta semelhança entre a composição da tela de Albuquerque com sua obra “Bahia” torna evidente a dinâmica corrente no campo profissional da pintura em que quadros costumavam responder em seus elementos pictóricos a outros quadros.

A estrutura das três personagens de Albuquerque se repete na composição de Tibério, que apresenta uma mulher negra junto com duas crianças que aparentam ser seus dois filhos. O estilo rápido do pintor, que o permitiu finalizar 127 obras nos seus oito meses na Bahia, não o impediu de mostrar seu interesse em apresentar um ambiente familiar estruturado, apesar da precariedade material, expresso em detalhes como o cuidado ao vestir os sujeitos e o pequeno altar no canto superior direito da parede. Elementos que contrastam com o ambiente fantasioso e condenável da tela de Albuquerque. 

A exposição das obras de Tibério realizadas na Bahia ocorreu no Ministério de Educação e Saúde em dezembro de 1946, logo após seu retorno. A mostra teve pouca atenção dos críticos de arte da época, como revelaram alguns profissionais da imprensa. Um dos poucos textos publicados foi feito pelo crítico de arte negro Tomás Santa Rosa: “Por paus e por pedras vai Tibério abrindo o seu caminho. Preocupado, inspirado nos temas de sua raça, integrado na Roma Negra, nos seus candomblés e rituais, sentindo fortemente esse veio condensado de símbolos para ele, Tibério tem aí o seu ponto forte”. 

A sociabilidade negra era central na produção de Wilson Tibério desde seus primeiros passos na carreira de artista. Ele começou a trabalhar profissionalmente como ilustrador na imprensa diária do Rio de Janeiro em 1940, onde ganhou notoriedade por realizar esboços rápidos. Na mesma época, ele começou seus estudos na ENBA. Nos anos seguintes, ele integrou exposições coletivas na capital federal, mas também em sua Porto Alegre natal, para onde enviou seu autorretrato como artista

Em 17 de outubro de 1945, Tibério fez a primeira exposição individual, “Motivos Afro-Brasileiros”,  patrocinada pela Associação Brasileira de Imprensa. Apesar de bem divulgada nos jornais, as sessenta obras da exposição foram pouco comentadas entre críticos de arte. Na época, Tibério era próximo de Abdias do Nascimento, com quem debateu as primeiras ideias que levaram a formação do Teatro Experimental do Negro em 1944. Ambos também compartilharam os diálogos com grupos políticos durante o processo de reabertura democrática. Em 1946, Tibério passou a integrar o Partido Comunista do Brasil, cujas redes ampararam naquele ano sua ampla documentação da classe trabalhadora negra de Salvador.

O pintor Wilson Tibério ingressa no Partido Comunista do Brasil. Tribuna Popular, Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1946, p.3. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.

Tibério formalizou publicamente seu ingresso no partido durante a exposição. Apesar de Tomás Santa Rosa ter sido um dos poucos críticos de arte a comentá-la na imprensa, a mostra chamou também a atenção do compositor e jornalista Isaltino Veiga dos Santos, militante do movimento negro paulista e membro fundador da Frente Negra Brasileira (FNB). Em uma entrevista concedida a ele para o jornal da imprensa negra paulistana Alvorada, Tibério compartilha ideias sobre a contribuição dos pintores negros para uma cultura antirracista: “Artista negro como eu entendo, isto é o negro que coloca a sua arte a serviço da sua raça, que procura motivos negros para a sua produção artística e que tem uma sensibilidade especial para tudo que recorda essa África gloriosa que sempre revejo nas litanias dos ‘candomblés’ baianos…”. Tibério fala também do seu plano de visitar o continente africano, que já iria se realizar no ano seguinte. Guiado por essas propostas, ele passa pelo Senegal, Benin e Sudão e se estabelece até o fim da sua vida em Paris, onde passou a integrar a rede de intelectuais do movimento da Negritude. 

No período entre a produção dos dois quadros e seus usos distintos, podemos observar a constituição de uma cultura política antirracista bastante diversa. A “Mãe Preta” de Lucínio de Albuquerque, possivelmente sem o esforço de seu autor, passou a integrar as disputas em torno dos monumentos e o feriado que iria rememorar a assinatura da Lei do Ventre Livre. Já “Bahia” de Wilson Tibério, em diálogo direto com a anterior, responde às demandas de uma experiência de modernismo negro que buscava romper espaços em uma profissão predominantemente branca. 

Estamos diante de uma experiência que certamente informou o projeto de Abdias do Nascimento ao propor em 1950 a formação de um Museu de Arte Negra. Assim como nas propostas dos monumentos à “Mãe Preta” de 1926, 1929 e 1954, a disputa em torno de sua imagem é protagonizada majoritariamente por homens, sejam eles negros ou brancos. Trata-se de um dado que revela a dinâmica ainda masculinizada do campo da arte moderna, em que o protagonismo de mulheres negras na produção de seus discursos ocorreu majoritariamente na atuação das modelos que trabalhavam durante a fatura das obras. Mulheres que, nos dois casos, permanecem anônimas.

Assista ao vídeo do historiador Bruno Pinheiro no Cultne. TV sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo deste texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); e EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc. – com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).

Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais); EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais – etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc. –, avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS103 (Elaborar hipóteses, selecionar evidências e compor argumentos relativos a processos políticos, econômicos, sociais, ambientais, culturais e epistemológicos, com base na sistematização de dados e informações de diversas naturezas – expressões artísticas, textos filosóficos e sociológicos, documentos históricos e geográficos, gráficos, mapas, tabelas, tradições orais, entre outros); EM13CHS104 (Analisar objetos e vestígios da cultura material e imaterial de modo a identificar conhecimentos, valores, crenças e práticas que caracterizam a identidade e a diversidade cultural de diferentes sociedades inseridas no tempo e no espaço); EM13CHS106 (Utilizar as linguagens cartográfica, gráfica e iconográfica, diferentes gêneros textuais e tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais, incluindo as escolares, para se comunicar, acessar e difundir informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva).


Bruno PinheiroDoutorando em História (IFCH/Unicamp), pesquisador visitante no Institute of Fine Arts/New York University (2020), mestre em Estética e História da Arte (MAC/USP); e-mail: s1dbpinheiro@gmail.com; Instagram: @brunoemtransito

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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