“Importação” de elementos para cultura ocorre a todo tempo, diz pensador

Por: Dayanne Mikevis

Pensador aponta como atos simples, como comer arroz, traz a integração de culturas


O pensador camaronês Céléstin Monga, que veio a São Paulo divulgar seu novo livro, Niilismo e Negritude – lançado no Brasil pela editora Martins Fontes -, disse que os empréstimos culturais ocorrem a todo momento.

Monga, que ainda no final da adolescência deixou seu país rumo à França, trabalha bastante na publicação os conceitos do que é tradicional e o que se transforma na África. Isto de uma maneira que não julga o que é melhor ou pior, como, por exemplo, os critérios na escolha de uma marido pelas moças de atualmente e de antes.

O pensador, que é economista-chefe e assessor do presidente do Banco Mundial em Washington, ainda comentou que, mesmo tendo passado tanto tempo longe de casa, ele ainda se vê como um camaronês.

R7 – Tradição e o moderno no livro se encontram o tempo todo. A África vive atualmente um dilema do gênero?

Céléstin Monga – É um problema que encontramos em todo lugar, em graus diferentes, e até mesmo no Brasil, eu imagino. Mas, para mim, a verdadeira questão é o que é a tradição e o que é realmente moderno? Não sabemos de fato. Fazemos o que cremos que é a tradição. Por exemplo, neste capítulo sobre as cerimônias em relação à morte do meu pai, mas muitos dos obséquios eram feitos com coisas muito modernas.

R7 – Como quais?

Monga – Por exemplo, me disseram para comprar uísque para os presentes. E eu perguntei, mas como o uísque é a tradição,se ele vem da Escócia? E me disseram: “é a tradição, você precisa fazer isso” (risos). Muitas vezes as pessoas mais apegadas à tradição se vestem como eu, de terno e gravata, como se estivessem em Paris. Então, é impossível de delimitar de maneira clara o que é tradição e o que é moderno, porque a cultura não é jamais algo estático.

R7 – Mas, de qualquer maneira, há algo que é realmente tradicional, não?

Monga – É algo que se movimenta, que evolui, que é dinâmico. A tradição é feita de empréstimos feitos de diferentes lugares, diferentes grupos e que nem sabemos que tomamos dos outros. Veja os instrumentos de música tradicional que utilizamos e depois, quando pensamos, podemos observar que muitos deles vêm de outros locais. Observe o que as pessoas comem nos vilarejos, como o arroz, por exemplo. Há um século, ele não existia no Camarões. Hoje, todo mundo come arroz e estão convencidos de que é o prato nacional do Camarões, e que é a tradição. Ninguém para para pensar que foi importado, assim como o café e muitas outras coisas. Esta tensão existe, mas ela tem bases artificiais, porque o modo de vida evolui mesmo se não nos damos conta. No entanto, eu acho que não podemos impedir as pessoas de definir o que são. Se alguém diz que faz a tradição beber uísque, não se pode impedir. É um direito, é uma escolha.

R7 – E você? Também enfrenta problemas de identidade?

Monga – Dado o fato de que saí do Camarões aos 17 anos para estudar na França e há mais de dez estou nos Estados Unidos, sou um pouco um cidadão do mundo. Sou cosmopolita, mas muito orgulhoso de ser camaronês e de ter meu passaporte do Camarões. Sei que pertenço a tal país, mesmo que seja bem recebido em todos os lugares do mundo. Eu me sinto muito bem no Brasil, em casa, mas minha ligação é com este lugar onde sei que meus pais mortos estão enterrados, onde tenho minhas memórias. E muitas pessoas se sacrificaram para que eu pudesse estudar, então seria impossível para mim pegar a nacionalidade americana e dizer que não sou um camaronês. Eu me sentiria muito culpado.

R7 – Mas eu vou a algo que para muitos brasileiros é essencial. Em seu livro, você não se diz próximo aos afro-americanos, que é verdade, já não tem muito de África atualmente? E no Brasil, você acha que parte da população pode se intitular afro-brasileira?

Monga – A identidade, em um dos meus primeiros livros, que se chama a antropologia da raiva, tem um capítulo sobre as identidades na África, que eu chamo de identidades mutantes, que mudam sempre. Eu não acredito, no que chamamos em filosofia, de essencialismo, na idéia de que cada raça tem uma essência e que devemos defendê-la. É por isso que sou muito distanciado de movimentos afro-centristas dos EUA. Não sou contra suas motivações, mas, em minha opinião, suas motivações são talhadas na história da opressão. A partir do momento que refletimos como reação à opressão, cometemos grandes erros. Mas podemos compreender que a opressão provoque uma reação. E é parte da idéia de que os negros tiveram a sua humanidade contestada. Alguém se recusou a classificá-los como seres humanos. Foram colocadas leis, durante séculos, para considerá-los como animais. A Constituição americana, talvez um dos mais belos documentos já escritos, foi concebida por homens que eram proprietários de escravos. E eles colocaram nela que todo homem nasce livre e igual em direitos.

R7 – E no Brasil?

Monga – Se temos no Brasil movimentos que nasceram em resposta à opressão, podemos imaginar que muitos tenham uma base essencialista. No entanto, a ciência mostra que dois negros podem ser mais diferentes do que um negro e um branco, em termos biológicos. Então, do lado biológico, o existencialismo não existe. Agora, o existencialismo que é baseado na cultura e, como disse há pouco, a cultura é algo que inventamos todos os dias sem nos dar conta. Eu não acredito no essencialismo, no ativismo essencialista. Sobre a negritude, este movimento inventado nos anos 1930,em Paris, no qual dizem que a negritude é o conjunto de valores do mundo negro, eu posso também compreender porque fizeram isso, porque estávamos em pleno período colonial e não se tem a idéia na Europa de que o negro tem um valor. Mas eu, em 2010, não posso conceber uma negritude assim, porque eu não conheci tal opressão.

 

 

Fonte: R7

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