Em pleno dia em que celebramos a independência do Brasil, vale questionarmos: quem somos enquanto nação? A quem cabe algum direito de fazer do território nacional sua casa? Afinal, que nação é essa quando atentamos para quem a habita?
A ciência histórica definitivamente não é a mestra da vida, mas nos indica quais processos e contextos explicam fatos que ocorreram por força de pessoas, e não simplesmente por obra da natureza ou de um destino. Isso nos ajuda a perceber que nossa nação tem um projeto que vem historicamente saindo vencedor.
Se há vitória, é porque há batalha, e essas geralmente não se dão nos campos de guerra, mas na disputa de projetos de nação. Pessoas fazem isso, e nós, historiadoras e historiadores no presente, buscamos entender a totalidade do que explicam essas experiências, que não são vividas apenas no tempo do espetáculo, como por exemplo, o “Grito do Ipiranga” ou “Independência ou Morte”, imortalizado na tela homônima de Pedro Américo.
A história que nos ajuda a responder à pergunta dessa reflexão é a que olha para as experiências, para a vida, como nos ensina a historiadora Beatriz Nascimento.
Pessoas migrantes, sobretudo vindas de países do Oriente Médio, África e da nossa vizinha Venezuela, buscam ser incluídas na categoria de refugiados no Brasil e deparam-se com uma série de restrições e constrangimentos enquanto esperam ser entendidos como tal por nossas autoridades e poder habitar nosso território. Não trata de processo novo, mas também se trata.
São as complexidades históricas relacionadas a quem pode habitar essa nação, que, por sua vez, articulam-se com marcadores sociais de quem demanda ou é atingido, e em primeiríssima instância, de quem ocupa o poder de definir e decidir. Essas complexidades oferecem o contorno dos projetos de nação que definem lugares sociais para pessoas a partir de concepções de cidadania entrecruzadas por significados específicos atribuídos a traços fenotípicos e culturais: existe um nós, um nós-outros e um outros.
O projeto vencedor do Império do Brasil ou o nós e o nós-outros do século XIX
A nossa nação foi forjada a partir de um golpe em 1822 cuja figura central é um europeu – Dom Pedro I -, calcado na força da economia escravista que levou à formação de um império e radicalizou a importância da escravidão como determinante da vida, em todos os seus sentidos. O europeu passa a ser o nós desejável e valorizado. O branco, com cultura vinculada ao continente de origem, aliado à força da religiosidade cristã, sob o poder da Igreja Católica como instituição fundamental.
Mas esse nós, evidentemente, não estava sozinho por aqui. Existiam os outros, dos quais o nós dependia para seguir assegurando seu lugar de poder de decisão sobre a vida, política, economia, religião, cultura e até mesmo dos afetos possíveis. Esses outros resistiram de diferentes formas, e não à toa, o projeto vencedor outorga, em 1824, a primeira Constituição do Império do Brasil por um conselho de Estado sob a autorização de Dom Pedro I, que havia destituído a Assembleia Constituinte.
Na nova Constituição, se no primeiro ponto das leis constitucionais são definidas as características político-administrativas, no segundo vem o significado de cidadania. Aqui, os libertos são considerados cidadãos desde que aqui nascidos, bem como todos os portugueses que aqui residiam quando da Independência. Mas os mesmos libertos, ou seja, pessoas negras que foram escravizadas mas alcançaram a liberdade, não poderiam votar.
Ainda que não tenha qualquer menção explícita à escravidão, essa pequena amostra, torna nítido quem são os nós, brasileiros, e quem ainda que estejam e permaneçam aqui, serão os outros. Não há qualquer menção aos indígenas, que naquele momento, quando considerados pela estrutura social dominante, estavam sob os domínios da Igreja Católica.
Foi contestado, ora por meio das alforrias, da reivindicação de não descriminação de libertos, como acompanhamos nas páginas d’O Mulato ou o Homem de Cor, primeiro jornal do que hoje denominamos imprensa negra, e que circulou em 1833, na capital da corte, o Rio de Janeiro. Mas também nas resistências à própria escravidão, que além das alforrias, viu um sem número de revoltas, formação de quilombos, e também fez com que as pessoas reduzidas à escravidão, nunca aceitassem tal redução exercendo sua existência enquanto corpos negros que constituíram afetos diversos, redes de solidariedade e especializaram-se em saberes laborais de forma a ocupar outros lugares sociais quando em liberdade. Essas pessoas, ainda assim, nunca perderam seus traços fenotípicos nem, por vezes, uma cultura de fortes bases africanas, lida como outra, externa à nação, ainda que dentro dela.
A tensão entre o nós, privilegiado, ocupando lugares de vantagem, e evidentemente branco, manteve-se frente aos outros, no extremo oposto de tudo aquilo. A nação, nascida naquele 1822, manteve por quase sete décadas essa relação de desvantagem entre o nós-outros, e agregou aqueles que em tese seriam outros, porque de fora, para compor o nós ao instituir políticas públicas de imigração. Mas esses imigrantes vinham do mesmo continente daqueles que simbolizam a instituição do Império, tratava-se dos germânicos e posteriormente os ítalos.
Vale lembrar que a cidade de São Leopoldo, localizada na região metropolitana de Porto Alegre, comemorou no último 25 de julho o bicentenário da imigração alemã. Ora, os germânicos começam a chegar aqui no mesmo ano da Constituição outorgada de 1824. Ao passo em que a escravidão foi fortalecida, a imigração também. O liberto, considerado cidadão, mas impedido de ser eleito e eleitor de segundo turno, parecia ocupar o dito lugar incômodo que todos os considerados outros ocupam.
O projeto de nação em tempos de República
A República instituída em 1889, após o fim da escravidão, precisou também deparar-se com a tensão de um nós frente aos outros. Já em 1890, o decreto 528 de 28 de junho, versava sobre as proteções resguardadas aos imigrantes, mas definia que dentre estes não estão incluídos “os indígenas da Asia ou da África“. A ideia de raça, informada pelas teorias raciais que consolidaram o racismo pseudocientífico, ditava as bases do projeto de nação das elites políticas. Como diversas pesquisas realizadas no campo de estudos do pós-abolição destacam, houve uma reconstrução das bases sociais de forma a manter o lugar social criado pela escravidão. A dita liberdade exigiu que o Estado nacional brasileiro erigisse estruturas informadas por uma vantagem para os brancos de ascendência europeia e desvantagem para os negros e asiáticos, que ocupavam as bases das pirâmides das raças.
Houve resistência a esse projeto mas também reafirmação da existência, a despeito dele. Reportamos isso cotidianamente nessa coluna, por meio de biografias e trajetórias, redes de solidariedade, associativismos, política-institucional e as relações vividas a partir de uma intersecção de marcadores da diferença, como as pesquisas sobre afro-indígenas, emprego doméstico, acesso à educação, sociabilidade, sexualidade e imprensa negra tem demonstrado, para ficar em alguns dos exemplos que alcançam as cinco regiões de nosso território.
A exclusão mantida no Império, e reelaborada na República, segue delineando os contornos da nossa nação. Trata-se de uma história de longa-duração, que ideologicamente defende a imagem de um país baseado em relações cordiais entre pessoas de diferentes pertencimentos sócio-raciais.
Somente na presidência de Fernando Henrique Cardoso o Estado reconheceu a existência do racismo. No entanto, a situação permanece e é o que agora informa a indisposição de receber os imigrantes contemporâneos ou mesmo os refugiados, sob o pseudo argumento do controle das fronteiras, em uma franca política de nações amigas, de forma a incorporar a agenda de combate à imigração nos EUA.
Este país, o nosso, que também é deles, fez-se em cima do tráfico humano e da exclusão daqueles que em tempos de escravidão ousaram não ocupar o lugar que lhe foi direcionado, mas também da atração de pessoas lidas não apenas como trabalhadoras, mas brancas. A manutenção da interdição de experiências sociais tendo por base o racismo perpetua-se, sob nova roupagem. Afinal, não passou e tampouco está ilesa às transformações sociais. De qualquer forma, a marca do racismo religioso, anti-negro, anti-indígena e anti-islâmico oferece uma potente resposta para a pergunta que intitula a reflexão aqui proposta.
Se historicamente isso nos caracteriza, resta-nos seguir disputando o futuro em que um projeto de nação possa ser verdadeiramente inclusivo, sem que características fenotípicas e culturais definam a priori um lugar de outridade e sejam fundamentais para impedir que pessoas habitem nossa nação. Talvez a tônica esteja justamente em questionarmos o fetiche por definir lugares sociais que a nação brasileira mantém desde 1822.
Oxalá outro tempo seja inaugurado!