Índios e negros da terra

 

A história ‘oficial’ ensinada nas escolas do RN, ‘garante’ que todos índios potiguares foram dizimados devido a resistência ao domínio do homem branco europeu; e que a presença da comunidade negra quilombola no Estado é irrelevante dentro do contexto social norte-riograndense – teorias defendidas, inclusive, por Luís da Câmara Cascudo em alguns de seus livros. Essa versão da história também foi reforçada com o desencadeamento do conflito entre luso-portugueses e índios, episódio que assolou terras nordestinas da segunda metade do século 17 até início do século 18 e que ficou conhecido como “Guerra dos Bárbaros”.

Durante muitos anos, talvez séculos, essa foi a ‘única verdade’ sobre o passado da Capitania do Rio Grande na esquina do Brasil colônia, e décadas se passaram até o surgimento de pesquisas capazes de descortinar um ‘outro passado’ e propor novos rumos para velhas máximas. A partir da necessidade de se romper com as amarras históricas impostas ao longo dos tempos, uma série de estudos acadêmicos, livros e até a produção de um filme entram em cena para desconstruir e dar novo significado à própria origem dos Potis ‘comedores de camarão’.

Para subsidiar a reflexão sobre o assunto, hoje, às 19h, na Livraria Siciliano do Midway Mall, serão lançados os livros: “Seridó Potiguar: tempos, espaços, movimentos”, compilação de estudos organizada por Marcos Alves, Rosenilson Santos e pelo historiador Helder Macedo; e “Negros no Mundo dos Índios: imagens, reflexos e alteridades” (Editora da UFRN 2011, 449 pág., R$ 40), coleção de artigos acadêmicos organizada pela professora baiana Maria do Rosário Carvalho, pelo pernambucano Edwin Reesink e pela francesa radicada em Natal Julie Cavignac.

O terceiro título da lista é a reedição de “Índios do Açu e Seridó” (Sebo Vermelho Edições), de Olavo de Medeiros Filho (1934-2005), a ser lançado nos dias 22, 23 e 24 de julho em Caicó, durante programação da tradicional Festa de Santana. O quarto livro, “Os Mendonça do Amarelão: identidade, memória e história oral”, da pesquisadora Jussara Galhardo, deve chegar às prateleiras até setembro. A obra trará detalhes sobre a formação da comunidade descendente de índios paraibanos localizada na zona rural de João Câmara; enquanto o longa metragem de ficção “Nova Amsterdam – Terra do Sol Banhada de Sangue”, do jornalista e cineasta Edson Soares, começa a ser rodado em Natal e traz como pano de fundo a ocupação holandesa, a presença indígena e o Massacre de Uruaçu (1645) ocorrido em São Gonçalo do Amarante.

Funai

De forma paralela, mas seguindo a mesma linha de raciocínio que contextualiza, descortina e propõe, Jusssara Galhardo, coordenadora do grupo de estudos da questão indígena no RN “Paraupaba”, afirma que os remanescentes indígenas passam por um “processo de reconhecimento” da própria origem. Seu estudo fala da comunidade Mendonça do Amarelão, em João Câmara, para onde índios paraibanos migraram há mais de 200 anos.

“Estudos comprovam que não houve o anunciado desaparecimento étnico, e sim adaptação social. Por isso não considero a redescoberta de nenhuma tribo, e sim a revelação e consciência da própria origem. Há uma demanda grande aqui no RN, tanto que pessoas de outros grupos ainda não identificados estão se aproximando do ‘Paraupaba’ em busca desse elo perdido com o passado”, analisa Jussara.

Para ela, é de fundamental importância a presença da Funai no RN neste momento de auto-afirmação: “A Coordenação Técnica Local – CTL da Funai está no RN desde abril, e coincide com a consolidação de cinco grupos remanescentes: além dos Mendonça do Amarelão, temos a comunidade Eleotério-Catu em Canguaretama; os Banguê e os Caboclos em Assu; e os Potiguares de Sagi”, enumera.

O nome do grupo de estudos reúne cerca de 40 pessoas de vários segmentos (entre educadores, pedagogos, indigenistas, estudiosos, pesquisadores, estudantes e universitários) é uma homenagem ao índio potiguar Antônio Gaspar Paraupaba, que viveu no século 16. Já o livro “Os Mendonça do Amarelão: identidade, memória e história oral”, que Jussara pretende lançar até setembro deste ano, é fruto de sua dissertação de Mestrado em Antropologia pela UFPE.

Nova Amsterdã

Prestes a iniciar as filmagens, previstas para a segunda quinzena de julho, “Nova Amsterdã – Terra do Sol banhada de sangue” é um longa de ficção que traz como pano de fundo o período histórico entre 1633 e 1645, quando os holandeses dominaram a província com o aval dos índios. Edson Soares, diretor e roteirista, foi buscar embasamento histórico nos livros de Cascudo. “Também contei com consultoria da historiadora holandesa Hannadea Van Nederveek, indicada pela embaixada da Holanda e também responsável pela tentativa de remontar a história da famigerada Companhia das Índias Ocidentais”, esclarece Edson.

A produção terá elenco internacional e a preparação dos atores está a cargo da atriz paraibana Marcélia Cartaxo. “Os atores potiguares estão tendo aulas de holandês com os atores que estão vindo da Bélgica e da Holanda. Também temos um ator alemão e um argentino no elenco”, adianta Soares. O orçamento inicial do filme teve que ser equacionado para caber dentro dos R$ 500 mil captados através do edital Prêmio BNB de Cultura em parceria com o BNDES, mais Governo Federal.

Mistura

Contrariando a tendência das pesquisas tradicionais, que abordam as questões negra e indígena de forma separada, a antropóloga e professora da UFRN Julie Cavignac afirma ser preciso “considerar o período colonial para entender a configuração social na atualidade”, afirma Cavignac. “Foi a partir da pesquisa para minha tese de Doutorado, onde abordei o tema ‘Memória do Cordel’, que percebi a visão europeizada das pessoas sobre a própria origem familiar. Há um desconhecimento sobre o papel da mistura entre índios, negros e brancos na formação da sociedade Norte-riograndense, e é sobre essa possibilidade de abordar o assunto de maneira ampla que tratam os artigos presentes no livro ‘Negros no mundo dos Índios…’. Queremos ressaltar as diferenças, mas de forma integrada”.

Na publicação organizada por Julie, há artigos de estudiosos da Bahia, do Maranhão, Pernambuco, Sergipe e Colômbia. “A obra está dividida em três partes. Nas duas primeiras, a Antropologia conversa com a História: verifica as fontes históricas e comenta sobre representação dos índios e negros; a terceira parte trata de como eles foram percebidos ao longo da história”, adianta a professora, há 15 anos morando em Natal e autora do único texto sobre o RN. Segundo ela, o título está saindo pela EDUFRN devido o fato da Universidade Federal do RN se destacar em estudos étnicos.

O título sobre o Seridó está inserido nesse contexto por ampliar os resultados recentes de pesquisas que revisitam o tema, e falam dos sujeitos sociais que protagonizam vivências identificadas naquela região do RN: ciganos, índios, negros, loucos e mendigos. Ou uma obra de multifaces, autores e olhares sobre um Seridó heterogêneo e complexo.

 

 

Fonte: Tribuna do Norte

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