Entre os dias 10 e 11 de outubro, a Seção de Direitos das Mulheres e Gênero do Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos (ACNUDH) se reuniu em um encontro fechado em Genebra, na Suíça, para discutir possíveis mecanismos que fortaleçam o trabalho interseccional das arquiteturas antirracista e de gênero dentro do sistema internacional de direitos humanos das Nações Unidas. Geledés-Instituto da Mulher Negra foi a única organização brasileira a participar do evento que contou ainda com a presença de autoridades da ONU e de organizações da sociedade civil, especialistas em gênero e/ou raça. Dos 30 participantes, 24 são das Nações Unidas.
O objetivo do encontro foi identificar as barreiras que impedem a aplicação do conceito de interseccionalidade tanto globalmente quanto dentro da própria ONU. A interseccionalidade, termo cunhado pela jurista estadounidense feminista Kimberlé Crenshaw, em 1989, ganhou relevância nas últimas décadas no sistema internacional de direitos humanos como uma estrutura vital para combater a opressão sistêmica de gênero e raça.
“Geledés destacou que a interseccionalidade é uma ferramenta analítica poderosa para entender os contextos nos quais ocorrem as discriminações de raça e gênero. Enfatizou também ser imprescindível nomear os grupos vulnerabilizados pelas diferentes violências, a fim de evitar a perpetuação da invisibilidade”, afirmou Carolina de Almeida, assessora internacional de Geledés e representante da organização no evento.
Segundo Carolina, a interseccionalidade, ao buscar escapar do universalismo, exige que identifiquemos claramente quem são os mais afetados pelas múltiplas formas de discriminação, violação de direitos e exclusão social em cada contexto específico. “Ressaltamos a importância de evitar generalizações. No Brasil, por exemplo, as mulheres negras ocupam a base da pirâmide social há mais de 500 anos, mas até mesmo dentro desse grupo existem camadas que precisam ser observadas com maior cuidado, como as mulheres negras com deficiência, as mulheres negras LGBTQ+, entre outras”, explica ela.
A assessora internacional de Geledés sublinhou ainda o fato de que no país, “as mulheres afrodescendentes nunca foram o foco de uma política pública especialmente desenhada para garantir a verdadeira emancipação política”.
A interseccionalidade nas abordagens de direitos humanos está presente tanto na Declaração e Programa de Ação de Durban de 2001, que se concentrou no combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância relacionada, quanto na Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, de 1995. Ou seja, a temática sobre desigualdade de gênero e direitos das mulheres é antiga. Desde então, as Nações Unidas têm se referido à interseccionalidade, inclusive por meio do trabalho interpretativo de órgãos de tratados como o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial e o Comitê para a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres. O trabalho dos Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos também é notável a esse respeito.
No Brasil, como bem pontuou a representante de Geledés em sua fala no encontro, as leis abertamente racistas são inconstitucionais, porém persistem as práticas racistas e discriminatórias em todos os níveis institucionais do país. Em sua fala, Carolina citou como exemplo a discriminação racial na emissão de vistos aos estrangeiros que querem adentrar o país. “Você sabia que nem todo mundo pode entrar no Brasil? Porque o Brasil exige vistos de cidadãos de mais de 60 países. Você sabe quantos desses 60 países são europeus? Nenhum. Você sabe quantos desses países são africanos? 70%! Os outros 30% são países do Oriente Médio e Extremo Oriente, e Haiti, que é a república mais antiga do mundo com uma população predominantemente negra”, disse ela.
O que a representante de Geledés questiona é a necessidade de a ONU, como uma líder global, rever seus próprios mecanismos, desmantelando essas barreiras institucionais e permitindo que a interseccionalidade seja aplicada de forma concreta, respeitando as especificidades de cada grupo e garantindo a visibilidade e voz às populações historicamente marginalizadas. Para Carolina, só assim as Nações Unidas farão jus à sua liderança mundial, com uma agenda verdadeiramente inclusiva e antidiscriminatória.