Intervenção escancara que Constituição não vale para pobres

Debate sobre o tema mostra uma sociedade flexível quanto a direitos e garantias individuais

por Flávia Oliveira no O Globo

O decreto de intervenção federal no Rio de Janeiro não completou uma semana e já deixou ferida a Carta Magna. O debate em torno da medida extrema e inédita escancarou uma sociedade tão flexível aos preceitos constitucionais quanto o governo Temer à legislação trabalhista. Deu a impressão de que direitos e garantias individuais operam no sistema de bandas, já usado no câmbio, ou de margens, tal qual o regime de metas de inflação. Valores democráticos valem mais ou menos dependendo do indivíduo e do CEP. Vale muito para quem vive no endereço correto. Fora dele, onde estão pobres, pretos, favelados, suburbanos — a periferia, enfim —, o viés é de baixa. Aí mora o perigo.

A gravidade da crise na segurança pública e na política e nas finanças do Rio tornava necessária — urgente até — uma ação articulada entre governo federal, estado e até municípios. Houve planos anunciados e jamais implementados, até Luiz Fernando Pezão jogar a toalha, e o presidente tornar interventor um general da ativa, Walter Braga Netto. Mas o decreto que tirou do governador a responsabilidade pela segurança pública nasceu tomado por inconsistências jurídicas.

A primeira delas foi a assinatura sem consulta prévia ao Conselho da República e ao Conselho de Defesa Nacional. Quem deu a pista foi a ministra Rosa Weber, do STF. No dia seguinte à publicação do decreto, ela travou uma ação de inconstitucionalidade movida pelo advogado Carlos Alexandre Klomfahs. Negou prosseguimento, porque mandado de segurança coletivo só pode ser impetrado por partidos com representação no Congresso Nacional, organizações sindicais ou entidades de classes. Os dois conselhos acabaram reunidos para apreciar a decisão já tomada, horas antes da votação na Câmara dos Deputados.

Mais grave é a queda de braço em torno dos mandados coletivos de busca e apreensão em favelas, defendidos pelo ministro da Defesa, Raul Jungmann. É ilegalidade evidente. Terça à noite, o Ministério Público Federal deu sinal inequívoco de respeito à Carta. Em nota técnica de oito páginas sobre o decreto de intervenção, enumerou “vícios que, se não sanados, podem representar graves violações à ordem constitucional e, sobretudo, aos direitos humanos”.

O MPF alertou que faltam informações sobre amplitude, prazo e condições de execução da intervenção. Reafirmou que, por ocupar cargo civil de competência do governador, o interventor tem obrigação de respeitar a legislação estadual. Refutou a natureza militar da função: “Qualquer interpretação que tente vincular o exercício da função de interventor com o desempenho de função estritamente militar será inconstitucional”. Por fim, declarou que mandados coletivos de busca, apreensão e captura ferem o Código Processual Penal, que determina a quem deve se dirigir uma ordem judicial, e o Artigo 5º da Carta, por ato discriminatório.

A nota técnica foi assinada por quatro membros do MPF, entre os quais a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, e a coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Criminal (2CCR), Luiza Frischeisen. A assinatura coletiva atrela a instituição ao texto. É parecer conjunto que dificilmente se tornou público sem consentimento da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, arrisca uma fonte.

A intervenção federal no Rio, até aqui, parece improvisada, movida por interesses político-eleitorais e juridicamente frágil. Fluminenses e brasileiros, a favor ou contra a medida, não deveriam hesitar sobre o respeito à Constituição. O que vale para um tem de valer para todos. Não é ideologia. É lei.

 

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