Foucault disse algo que muito incomodou – e incomoda – a modernidade. Chamou atenção para que tomássemos cuidado com o fascismo, não se limitando àquele que se estereotipou enquanto ditadura política culminando no holocausto e seus efeitos, pelo contrário, referia-se, sobretudo, ao fascismo que habita em cada um de nós!
Por Adriel Dutra, do Letra e Filosofia
Em uma belíssima introdução à obra O Anti-Édipo de Deleuze & Guattari, Foucault sintetiza alguns fios de pensamento para se pensar uma vida não fascista. Breves parágrafos para nos incomodar e nos levar a pensar a complexidade do nosso “pequeno fascismo diário”, se assim podemos dizer, já que costumamos usar a palavra fascismo apenas para nos referir àquilo que ficou consagrado enquanto ideologia política do século XX.
… esquecemo-nos das pequenas doses diárias do fascismo cotidiano que habita em nós, como por exemplo, no tratamento dispensado, nos olhares e nos gestos, diferenciados hierarquicamente, com que se costuma dirigir ao homem branco, bem vestido, de carro do ano e de verbalização fluente em detrimento do homem pobre, mal vestido, de chinelo e com um sotaque nordestino; ou ainda, quando nos semáforos da cidade fecham-se os vidros do carro e dirigem o olhar para o “nada” a fim de evitar a existência do sujeito que ali nos interpela por uma esmola. E tantas outras formas sutis com que se pode exercer o fascismo sobre a vida, é sobretudo nesse ponto que Foucault atinge o ego das sociedades de controle.
“Eu diria que O Anti-Édipo (possam seus autores me perdoar) é um livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França desde muito tempo (é talvez a razão pela qual seu sucesso não se limitou a um “leitorado” particular: ser Anti-Édipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensamento e de vida). Como fazer para não se tornar fascista mesmo (e sobretudo) quando se acredita ser um militante revolucionário? Como livrar do fascismo nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres? Como desentranhar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento? Os moralistas cristãos buscavam os traços da carne que se tinham alojado nas dobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua vez, espreitam os traços mais íntimos do fascismo no corpo.Prestando uma modesta homenagem a São Francisco de Sales, poderíamos dizer que O Anti-Édipo é uma introdução à vida não fascista.Essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, estejam elas já instaladas ou próximas de sê-lo, é acompanhada de certo número de princípios essenciais, que resumirei como segue, se eu devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana:
- Liberem a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante.
- Façam crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, e não por subdivisão e hierarquização piramidal.
- Livrem-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, as castrações, a falta, a lacuna) que por tanto tempo o pensamento ocidental considerou sagradas, enquanto forma de poder e modo de acesso à realidade. Prefiram o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os agenciamentos móveis aos sistemas. Considerem que o que é produtivo não é
- sedentário, mas nômade.
- Não imaginem que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo se o que se combate é abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga nas formas da representação) que possui uma força revolucionária.
- Não utilizem o pensamento para dar a uma prática política um valor de Verdade; nem a ação política para desacreditar um pensamento, como se ele não passasse de pura especulação. Utilizem a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política.
- Não exijam da política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação e o deslocamento, o agenciamento de combinações diferentes. O grupo não deve ser o liame orgânico que une indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”.
- Não se apaixonem pelo poder. [grifos meu] (…)
M. Foucault in O Anti-Édipo, Deleuze & Guattari, Editora 34.