Irlanda, Lavanderias Madalenas e a importância do Estado laico

Atendendo a um discurso hegemônico eurocêntrico e racista, é muito comum que a associação entre Estado e religião seja vista como potencial ameaça aos Direitos Humanos apenas quando a fé, que ganha status de legisladora, é a praticada pelo outro. Aquela sobre a qual sabemos muito pouco, um muito pouco cuidadosamente selecionado para que continuemos enxergando-o sempre como ameaça.

Texto de Iara Paiva com colaboração de Deborah Leão.

Mas se, como feministas, defendemos a laicidade do Estado, é porque sabemos que ela é fundamental para a conquista e manutenção dos direitos de todos – inclusive da liberdade de culto para os praticantes de todas as religiões, é bom lembrar. A forte associação entre religião e Estado pode causar danos imensos e irreversíveis à população, inclusive nos países ditos “ocidentais”.

Conheci a história das Lavanderias Madalenas no filme Em nome de Deus (2002). A história se passa nos anos 60, na Irlanda. Três jovens são internadas compulsoriamente em uma unidade desta instituição a fim de expurgarem seus pecados e serem reabilitadas para o convívio social. Uma delas foi estuprada por um primo durante uma festa de casamento, a segunda é mãe solteira, e a última, uma órfã cuja beleza e personalidade atrevida começam a chamar a atenção dos meninos da vizinhança.

Nenhuma delas é criminosa, mas todas são desviantes da moral sexual católica. No local, vão se deparar com uma rotina de trabalhos extenuantes não-remunerados, condições insalubres, alimentação precária, privação de liberdade, abusos morais, despersonalização. Condições análogas à escravidão, portanto. E, embora a unidade retratada pelo filme seja gerida por freiras católicas, casas como essa não foram criadas por uma Ordem desta religião. A primeira unidade, ainda no século 18, era administrada por uma senhora protestante. Mas sua finalidade declarada já era a mesma: resgatar mulheres caídas em pecado, por meio do trabalho.

A existência desses estabelecimentos era pouco discutida até um escândalo explodir em 1993 [1]. A ordem religiosa que administrava uma delas vendeu seu imóvel para uma construtora, que descobriu os corpos de 155 mulheres enterradas em túmulos sem identificação. A mídia começou a repercurtir e questionar a falta de dignidade da condição dessas ex-internas. A última das lavanderias foi fechada em 1996 e, a partir daí, as sobreviventes e seus descendentes passaram a se organizar para exigir reparações pelos abusos cometidos. O filme de 2002 foi produzido com base nos testemunhos destas mulheres.

A partir dos anos 2000, as notícias de abusos sexuais cometidos por autoridades católicas fortaleceram o movimento das ex-internas. Mas, somente em 2011, quando as entidades que advogam pela causa conseguiram apresentar um relatório para o Comitê das Nações Unidas contra a Tortura, que a Irlanda resolveu investigar a parcela de responsabilidade estatal na manutenção dessas instituições.

O documento [2], publicado na íntegra esse ano, mostra que o Estado irlandês sempre esteve, de maneira direta e indireta, ligado a essas instituições. O período analisado é entre 1922, ano da independência da Irlanda, e 1996, quando as atividades foram encerradas. Nesses 74 anos, mais de 11 mil mulheres passaram pelas dez instituições pesquisadas, segundo as fontes oficiais (mas estima-se que até 30 mil mulheres possam ter sido internadas desde o século 18). O relatório reconhece que “apenas” 19% chegaram a elas por vias estatais – sistema penal, orfanatos públicos, recomendações do serviço social ou de saúde. Considerando que a origem de 28% é ignorada e que 18% foram registradas como vindas de outras lavanderias, não é errado estimar que o percentual de mulheres internadas pelo Estado possa ser muito maior.

O relatório ainda menciona a participação do Estado no financiamento de algumas instituições, quer por doações, quer utilizando os serviços das lavanderias. Fora isso, esclarece que até 1963 a Irlanda não reconhecia as lavanderias como um endereço válido para identificação eleitoral; logo, as internas era privadas de seus direitos políticos durante o período de seu confinamento.

Importante dizer que a maior parte das internas não ficava ali até o fim de sua vida. O relatório oficial diz que o período de permanência de cerca de metade das internas não é conhecido. E resolve fazer o que (a meu ver) parece um malabarismo estatístico: separa da média de permanência os casos em que a interna ficou até o fim da vida. Daí encontra uma média de 27 semanas de permanência entre as mulheres que deixaram as lavanderias em algum momento de suas vidas. Mas a média sobe para mais de três anos quando consideramos todas as mulheres. Embora as testemunhas relatem, sim, casos de graves abusos morais, o inquérito não encontrou evidências de agressões físicas ou sexuais, como mostradas no filme de 2002. O que não diminui o horror do que se passava ali dentro, claro.

Para além das evidências diretas do papel do Estado, é fundamental considerar também as indiretas. Reporta-se que 10% das mulheres foram levadas pela família, 8% pelo padre de sua paróquia e 11% entraram na instituição por “vontade própria”. O historiador James Smith, autor de um livro sobre as Lavanderias Madalenas, defende na introdução de sua obra que [3], após sua independência, a Irlanda investiu em uma política de controle da sexualidade. Havia uma forte preocupação estatal não só com a existência de crianças nascidas fora do casamento de maneira específica, mas com a repressão da sexualidade de maneira geral.

Considerando a construção de uma mentalidade que restringia a mulher ao espaço doméstico e à função de reprodutora de filhos “legítimos” – a importação e a comercialização de qualquer dispositivo anticoncepcional chegaram a ser proibidas por lei [4] antes mesmo da invenção da pílula – não é difícil imaginar que crianças e mulheres solteiras sexualizadas, quer por escolha, quer como vítimas de abusos, fossem marginalizadas. Neste contexto, uma instituição que se propunha a salvar essas mulheres ”pecadoras” possivelmente era vista como o único destino possível para elas.

Em 6 de fevereiro deste ano, o governo irlandês publicou o inquérito completo e declarou que lamentava muito o ocorrido (“we are sorry”) e a participação do Estado nesses abusos [5]. A declaração foi recebida com muita revolta pelas vítimas e seus representantes. Em inglês, “sorry” expressa pesar, mas não responsabilidade direta. O que se esperava era o termo “apologise”, que significa “desculpar-se”, já que esse reconhecimento é importante para os processos de reparação, como a inclusão no sistema de previdência (formalmente, o tempo trabalhado nas Lavanderias não era reconhecido como emprego para efeitos de aposentadoria). Após a polêmica, que envolveu uma ameaça de greve de fome [6] por parte das sobreviventes, o premiê irlandês Enda Kenny deu uma declaração, em que expressava de maneira mais contundente, às lágrimas, a responsabilidade estatal pelo sofrimento dessas mulheres [7].

Infelizmente, não podemos considerar as ex-internas das Lavanderias Madalenas como as últimas vítimas da desastrosa associação Igreja-Estado na Irlanda. Em outubro do ano passado, Savita Halappanavar, uma dentista indiana de 31 anos que vivia em Galway, no oeste do país, morreu depois de complicações em decorrência de um aborto espontâneo [8]. Ao ser internada com dores, em claro processo de abortamento, teve a curetagem que poderia salvar sua vida negada pelos médicos. Como justificativa para negar-lhe o procedimento, a família ouviu dos profissionais de saúde que “a Irlanda é um país católico” [9].

De fato, o aborto em razão de risco de vida para a gestante só foi autorizado no país, por uma decisão da Suprema Corte em 1992 sobre o caso de uma adolescente que, grávida depois de sofrer um estupro, ameaçava se suicidar [10]. Mas nenhuma lei que endossasse a decisão ou que protegesse mulheres que correm riscos por razões médicas chegou a ser redigida, o que impede o acesso ao aborto legalizado no país. Estima-se que anualmente milhares de irlandesas viajem à Inglaterra, onde o aborto é legalizado, para interromper sua gestação [11].

Como a gravidez de Savita era desejada e seu caso foi uma emergência, ela não teve essa oportunidade. Cabe dizer que é muito significativo que Savita seja indiana, portanto parte deste “outro” cultural, sempre tão ameaçador. Não se trata de comparar as condições objetivas de vida das mulheres na Índia e na Irlanda, mas o fato é que, na primeira, casos como de Savita são amparados pela lei [12].

Por último, importante ressalter que o objetivo deste texto não é atacar a Irlanda, a Igreja Católica ou qualquer Estado ou religião em particular, mas de defender a ideia de que quando as leis e as práticas civis de um país se encontram subordinadas à noção moralizante de pecado, a dignidade de pessoas desviantes dessa norma, inclusive daquelas que não acreditam nela, encontra-se em grave risco.

Referências:

[1] Irish Church’s Forgotten Victims Take Case to U.N.

[2] Report of the Inter-Departmental Committee to establish the facts of State involvement with the Magdalen Laundries. Observação: como a finalidade deste texto não é acadêmica, não me preocupei em marcar as páginas de onde tirei cada um dos dados citados, apenas deixo claro que fui buscá-los na fonte primária.

[3] SMITH, James M. Ireland’s Magdalen Laundries and the Nations’s Architeture of Containment. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2007 (pág 1-20).

[4] Criminal Law Amendment Act, 1935.

[5] Ireland finally admits state collusion in Magdalene Laundry system.

[6] Magdalene laundries survivors threaten hunger strike.

[7] Ireland apologises for ‘slave labour’ at Magdalene Laundries.

[8] Morte de indiana grávida na Irlanda gera protesto em Nova Déli.

[9] Savita Halappanavar inquest: No termination as ‘Catholic country’.

[10] Abortion in the Republic of Ireland.

[11] Life Choices – Yet another plebiscite on abortion looms in Ireland.

[12] Abortion in India.

Mais links sobre as Lavanderias Madalenas:

[+] Gêmeas adotadas descobrem passado obscuro de mãe biológica – Filhas de mulher que foi vítima de trabalhos forçados em uma das Lavanderias de Madalena na Irlanda começam uma campanha por indenização do Estado.

[+] The Magdalene Laundries report confirms the need to keep church and state matters separate in Ireland.

[+] Ireland’s Magdalene Laundries: I hope my birth mother can now rest in peace.

[+] Justice for Magdalenes.

 

 

Fonte: Blogueiras Feministas 

 

Saiba Mais:

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