Itamar Vieira Junior e a crítica literária nos tristes trópicos

Outros fatores costumam chegar na frente do pretenso rigor intelectual

É normal acreditar que somos imparciais e fazemos boas avaliações. Que olhamos somente para a qualidade daquilo que pretendemos avaliar. Porém, pesquisas sugerem o contrário. É difícil focar os critérios que realmente importam e, ao mesmo tempo, eliminar todos os nossos vieses, muitas vezes implícitos, dos processos avaliativos.

O mundo da música traz um importante ensinamento. Em 1970, estima-se que nas cincos principais orquestras sinfônicas dos Estados Unidos o percentual de mulheres fosse de menos de 5% de todos os músicos. Nas décadas de 1970 e 1980, várias orquestras começaram a revisar suas políticas de contratação. Muitas delas passaram a usar audições às cegas para esconder do júri a identidade do candidato. Como resultado, as chances de as mulheres serem admitidas aumentaram.

O escritor Itamar Vieira Junior – Gabriel Cabral – 10.jun.2023/Folhapress

No estudo “Orchestrating Impartiality: The Impact of “Blind” Auditions on Female Musicians”, as pesquisadoras Claudia Goldin e Cecilia Rouse mostraram que as audições às cegas poderiam explicar até 55% do aumento da proporção feminina entre as novas contratações.

No futebol, o cenário é parecido. Ele também parece ser um pouco diferente quando não visualizamos quem é que está jogando. Essa é a conclusão do estudo “Pace and Power: Removing Unconscious Bias from Soccer Broadcasts”.

O ponto de partida do trabalho foi analisar a avaliação daqueles que, supostamente, entendem de futebol. É comum comentaristas e especialistas destacarem que jogadores brancos são inteligentes e que os negros possuem qualidades físicas. Na Copa do Mundo de 2018, no jogo entre Polônia, cujos jogadores eram todos brancos, e Senegal, equipe que tinha só negros, ficou evidente o viés racial na forma como comentaristas e a mídia avaliaram as duas equipes.

Nesse contexto, os pesquisadores do estudo procuraram entender como seriam as avaliações se não pudéssemos observar qual era o time que estava jogando. Para isso, criaram um vídeo com uma renderização em que os jogadores apareciam como bonecos e, desse modo, não era possível identificar a equipe.

No experimento, para os fãs de esportes que assistiram ao vídeo original do jogo da Copa do Mundo, 70% apontaram Senegal como equipe “mais atlética ou rápida”. Curiosamente, para aqueles que viram somente a animação e, assim, não conseguiam visualizar os jogadores, 62% escolheram a Polônia como o time mais atlético.

Tal evidência não deveria ser menosprezada. Para jogadores negros que pretendem virar técnicos, ser associado somente a boa forma física, não a inteligência, certamente é algo que os coloca em desvantagem.

No mundo dos livros, as minorias também não estão imunes a vieses. O autor de “Torto Arado” e premiado escritor Itamar Vieira Junior é um fenômeno literário. Porém, se dependesse somente da crítica, talvez seu destino tivesse sido outro. Conforme destacou Paulo Roberto Pires, em 2021, na Revista Quatro Cinco Um: “O livro de Itamar Vieira Junior não deve seu sucesso a jurados ou críticos, mas à irresistível boca a boca”. Na ocasião, Pires argumentou que a unanimidade em torno do escritor poderia gerar uma espécie de “fofura tóxica” que inibiria o debate sobre literatura.

De fato, críticas são importantes para o desenvolvimento de qualquer ser humano. Especialmente em um momento em que muitos estão abraçando bandeiras difíceis de defender. Entretanto, não podemos esquecer que, mesmo quando não temos a intenção, nossa tendência natural é penalizar, desproporcionalmente, aqueles que já são, sistematicamente, penalizados.

Diversas pesquisas sugerem que a avaliação das obras costuma ser indissociável da figura dos indivíduos. Preconceitos, implícitos ou não, e outros fatores tendem a chegar na frente do pretenso rigor intelectual.


O título é uma referência ao livro “Tristes Trópicos”, de Claude Lévi-Strauss, e uma homenagem à música de mesmo nome, de Itamar Assumpção.

YouTube video

+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...