Nossos passos vêm de longe

É provável que o mundo miss não faça sentido em sua vivência. No entanto, o mundo miss é um dos contextos em que muitas mulheres negras experimentam cotidianamente: um espaço criado pela e para a branquitude

Julho é o mês em que celebramos o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha. A data — escolhida durante o primeiro encontro de mulheres afro-latino-americanas e afro-caribenhas sediado na República Dominicana — é o dia 25. Instituída desde 1992. No Brasil, a data também homenageia Tereza de Benguela, uma grande líder do quilombo Quariterê, que viveu no século 18. Depois da morte de seu companheiro, Tereza se tornou a rainha do quilombo, e por meio de sua liderança homens e mulheres resistiram à escravidão por duas décadas até 1770.

A primeira vez que entrei em contato com essa data foi em 2015. Dias antes do primeiro aniversário da Lei nº 12.987/2014, — que sancionara o 25 de julho como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, eu me tornara a primeira miss negra do Distrito Federal. É provável que o mundo miss não faça sentido em sua vivência. Até 2015, também não fazia parte do meu. No entanto, o mundo miss é um dos contextos em que muitas mulheres negras experimentam cotidianamente: um espaço criado pela e para a branquitude. Em minha primeira escrevivência — publicada no livro Saúde Mental da População Preta Importa [Ed. Conquista, 2022] — trago um pouco sobre esse recorte de minha vida e reflito também sobre como, em muitos momentos, a estratégia possível para pertencer àquele mundo fora o embranquecimento.

Na psicologia, temos uma grande ancestral, Neusa Santos, que nos elucida a respeito do processo emocional que é se constituir negro em uma sociedade edificada pelo padrão branco. Segundo Neusa, cultivar autoestima, ou seja, sentir-se capaz de fazer algo, acreditar ser inteligente, suficiente e valioso para si e para o outro pode ser um processo penoso para nós pessoas negras. Isso porque, muitas vezes, temos internalizado como referência de valor o sujeito branco. Isto é, seus hábitos, gestos, traços, enfim, sua forma de ser e estar no mundo.

Tal mecanismo gera em nós, pessoas negras, uma ferida profunda (narcísica para a psicanálise), tornando frágil e sensível a percepção e logo a aceitação de quem somos. No contexto da beleza, ter o padrão branco como referência de humanidade, sugere que ser negro é ser o oposto: é não ter a pele branca, não ter o nariz fino, não ter cabelos lisos, não ter, não ser, não poder. Desta maneira, estar em espaços extremamente embranquecidos pode ser muito doloroso e adoecedor para pessoas negras. Ainda que haja o ganho social da ascensão, por exemplo, dificilmente isto será suficiente para impedir as diversas formas de racismo oriundas da violenta lógica eurocêntrica em que vivemos.

Apesar de ainda ser presente, angustiante e dominante, a lógica eurocêntrica não passa de uma perspectiva. O professor emérito Wade Nobles explica-nos sua teoria sobre a importância da afrocentricidade. Segundo ele, é necessário entendermos que a cultura ocidental se propõe universal, mas de fato não é. Sendo assim, nós, pessoas negras, sobretudo na diáspora, precisamos encontrar caminhos para nos (re)conectarmos com a nossa real história, valores e perspectivas. O que nos traz de volta à Tereza de Benguela e ao título deste artigo.

Tal mecanismo gera em nós, pessoas negras, uma ferida profunda (narcísica para a psicanálise), tornando frágil e sensível a percepção e logo a aceitação de quem somos. No contexto da beleza, ter o padrão branco como referência de humanidade, sugere que ser negro é ser o oposto: é não ter a pele branca, não ter o nariz fino, não ter cabelos lisos, não ter, não ser, não poder. Desta maneira, estar em espaços extremamente embranquecidos pode ser muito doloroso e adoecedor para pessoas negras. Ainda que haja o ganho social da ascensão, por exemplo, dificilmente isto será suficiente para impedir as diversas formas de racismo oriundas da violenta lógica eurocêntrica em que vivemos.

Apesar de ainda ser presente, angustiante e dominante, a lógica eurocêntrica não passa de uma perspectiva. O professor emérito Wade Nobles explica-nos sua teoria sobre a importância da afrocentricidade. Segundo ele, é necessário entendermos que a cultura ocidental se propõe universal, mas de fato não é. Sendo assim, nós, pessoas negras, sobretudo na diáspora, precisamos encontrar caminhos para nos (re)conectarmos com a nossa real história, valores e perspectivas. O que nos traz de volta à Tereza de Benguela e ao título deste artigo.

A importância de exaltarmos a mulher negra latina e caribenha, não apenas no dia 25, como em todos os dias, serve para rememorarmos e celebrarmos as mulheres negras que vieram antes de nós, as que somos e as que virão. Conhecer e escrever a história de Tereza de Benguela em 2015 mudou completamente a percepção de quem eu era naquele espaço. Saber que descendemos de mulheres como ela fez-me entender que talvez o mundo não saiba o quão potente nós, mulheres negras, somos. Nossas histórias precisam ser contadas para que se saiba que já fomos líderes, rainhas, intelectuais, gestoras, escritoras, exímias artistas, mães e criadoras do mundo.

Entender que os “nossos passos vêm de longe” é afirmar que somos um legado de prosperidade, ainda que o mundo não nos veja assim. Intelectuais como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e Sueli Carneiro nos mostram também que há muito a ser alcançado. Ainda somos a parcela da população mais vulnerável em muitos marcadores e elas já denunciavam e davam passos em direção à conquista de direitos numa trilha que hoje seguimos lutando e resistindo. “Nossos passos vêm de longe” é o afago de um sonho sonhado junto. É sobre nos conectarmos com a nossa ancestralidade individual e coletiva, entoarmos as nossas vozes, sonharmos e caminharmos confiantes de que a cada passo não estaremos a sós. Que nunca nos esqueçamos. Salve Tereza de Benguela! Salve a mulher negra latino-americana! Salve cada uma de nós!

Amanda Balbino Filha de Suzie, neta de Nilza e Osmarina; psicóloga e escritora brasiliense

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