Jean Mello – Pensamento Negro!

por Jean Mello

Na boca de gente que despreza ou não entende a luta dos movimentos negros no Brasil, racismo virou complexo de inferioridade. Não é raro ouvir acusações dizendo que os negros se colocam sempre em um lugar de inferioridade, ou que quando reivindicam algo cometem o famoso racismo às avessas:

– Compreendo amigo que o Brasil é um país racista, mas vocês estão sendo mais racistas ainda quando falam da discriminação. Parem de ser racistas ao contrário, ouvi um dia em uma conversa de dois jovens num ônibus.

Em outro momento, nem faz tanto tempo assim, concentrado em minhas leituras no Centro Cultural São Paulo, ouço o diálogo:

– Nossa, você viu aquela menina da nossa sala? Só foi o professor falar de cotas na universidade, mesmo todos se mostrando contra, ela se levantou e falou que era a favor e que essa é uma importante medida não apenas para sanar a dívida que o Brasil tem com os negros, mas, também, para dar condições de igualdade de oportunidades. Como ser igual tratando os outros com diferença? Ai amiga, faz tempo que venho observando ela e tenho nojo desse racismo que está sendo promovido por quem diz participar desse tal Movimento Negro.

– Concordo, acho que ela nem está preparada para entender o que é universidade. Com essa mentalidade nem compreendo como ela chegou até o ensino superior.

– Cotas né amiga! Ela com certeza tirou a vaga de alguém mais capaz.

– Verdade, o mais sensato a fazer é ignorar. Quanto mais você fala pior fica, ela tem argumento pra tudo.

Pensei em interromper a conversa delas logicamente discordando de tudo aquilo, explicando qual é o teor das Ações Afirmativas, que isso sempre aconteceu no Brasil, talvez até mesmo beneficiando seus pais e avós, mas, não sei por qual motivo, resolvi apenas ir para outro lugar para não ficar mais irritado com tanta ignorância.

Corro aqui o risco até de ser questionado por alguns leitores, dizendo que deveria colocar outras questões para demonstrar os outros diversos lados que a história oficial não conta. O que acontece é que – as pessoas que estão faz tempo nessa, sabem – todos os dias lidamos com os mesmos argumentos contra assuntos que não dizem respeito apenas à população negra, e o pior, questões antigas. Melhor dizendo, todo tempo precisamos responder as mesmas perguntas, ou que não seja responder, já que não somos donos do saber, mas dialogar sobre os mesmos assuntos.

Seria bem fácil eu dizer que apenas não avançamos por culpa do povo, quando, na verdade, alguns setores dos próprios movimentos sociais descaracterizam o assunto racismo, não dão a devida importância. A diminuição da discriminação e a desestruturação do racismo institucional são benéficos não apenas para negros, mas para o Brasil como um todo, muita gente não sabe e outras fingem não saber.

Talvez ainda a descrição de militante para nós seja a mais correta… Exercemos militância nas universidades, nos espaços de poder ocupados pelos partidos políticos, na resistência de organizações negras, grandes ou pequenas, que disputam, inclusive, recursos com os milhares de projetos sociais de instituições das mais diversas temáticas. Na simplicidade aparente da blogosfera que para mim nada tem de simples, porque se tornou a oportunidade, ainda que remota em alguns aspectos, de produzir informações próprias com a oportunidade de alcançar um público considerável. São inúmeras as formas de falar contra a avalanche que insiste em jogar de lado a crueldade racista brasileira.

Fico pensando que da mesma forma que em espaços supostamente informais, como é o exemplo dos programas de humor, a blogosfera, as rodas de conversa, os ambientes de família e tantos outros espaços e acontecimentos, o racismo é disseminado, temos, enquanto estratégia de atuação utilizar esses mesmos espaços não apenas para denúncia, mas, também, para espalhar nossas questões, com astúcia e a inteligência que temos em abundância. Quem sabe assim conseguimos pautar o cotidiano da população. Afinal de contas – sabendo que as diversas faces da discriminação estão arraigadas no imaginário e práticas das pessoas, às vezes até de modo imperceptível – é assim que o racista faz. Aliás, são centenas os racistas que passam despercebidos, cometem seus crimes com um sorriso no rosto, tem ou não tem muita gente assim?

Infelizmente, da mesma forma que temos mais mecanismos para o combate, temos também de enfrentar modos mais sofisticados de discriminação racial. Pois para mim, quanto mais a tecnologia avança ainda mais cruel se torna a atuação dos racistas. Quando digo isso não quero afirmar que a culpa é do desenvolvimento científico e dos recursos tecnológicos. A questão é quem detém o poder para usar estas ferramentas. Já parou para pensar nisso?

Quase ninguém diz que não existe racismo no Brasil, só que ao mesmo tempo ninguém se assume como racista e em outros casos alegam não ver racismo em nada. Existe algo de muito errado nesse jogo todo. Um exemplo disso são os comentários que fizeram em um dos meus artigos, no caso específico de ter acusado Arnaldo Jabor de ter descaracterizado em uma frase aparentemente inocente para muitos, o ex-ministro dos esportes, Orlando Silva.

Vejo sim avanços – nem tem como não perceber – apesar do cenário ainda ser preocupante. Negar conquistas históricas não é o caminho. Mas não posso deixar de dizer o que vejo. Nas conversas cotidianas em escolas, shoppings, redes e mídias sociais, ônibus ou carros de luxo, discursos superficiais tentam minimizar assuntos de extrema complexidade, até diminuir a importância da atuação negra na história, bem como esconder o agressivo e covarde racismo brasileiro.

Ainda bem que ainda tem gente que não mudou para agradar, chamando de preconceito ou pulverizando a luta negra em forma da famosa diversidade, escondendo a palavra que quase ninguém quer ouvir, racismo. Enquanto existir resistência acreditarei em ações sérias, se algum dia isso tudo acabar as coisas realmente estarão perdidas. Não somos complexados, apenas realistas.

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