Mauro Santayana: A face esmagada do morto pobre e a sina do menino rico

por Mauro Santayana

O episódio trágico, do atropelamento e morte de Wanderson Pereira da Silva, pelo jovem Thor Batista, sugere algumas reflexões sobre a realidade brasileira de nossos tempos. Com altos e baixos, avanços e retrocessos, a história política é a da constante luta pela liberdade. Liberdade não é um conceito utópico e ideal, mas uma forma digna de viver. Ao enumerar as quatro liberdades, Roosevelt poderia tê-las resumido a uma só: a liberdade contra o medo. Somos, todos os seres vivos, sujeitos ao medo maior, que é o da morte. Mas se não podemos afastar do destino o fim inexorável da existência biológica, podemos afastar os outros medos, como os da fome, do desemprego, da doença, e até mesmo da humilhação, mediante o compromisso ético da solidariedade.

O grande medo que persegue os pobres, desde que surgiu a propriedade privada sobre os bens comuns, é o da injustiça. O pobre, filho de pobres, continuando pobre, sabe perfeitamente que a justiça será sempre contra ele, ainda que haja advogados e juízes honrados que possam defendê-lo. Acima da dignidade dos juízes, impõem-se o sistema econômico e as brutais normas do capitalismo.

Há ocasiões em que os poderosos continuam a ter vantagens

As leis, conforme a constatação óbvia do abade Sieyès, que deveriam combater a desigualdade, são, elas mesmas, cúmplices dos privilégios. Mas há ocasiões em que, ainda que as normas e leis sejam claras e busquem a igualdade entre todos os cidadãos diante da justiça, os poderosos continuam a ter vantagens.

O jovem Thor, filho de um dos homens mais ricos do país — e que tem como meta tornar-se o mais rico do mundo — não é culpado de seus privilégios. Ao contrário: por mais poderoso seja hoje e ainda muito mais poderoso possa vir a ser amanhã, ele sempre será menor do que poderia vir a ser, se o seu berço fosse normal. Ele não terá a alegria de realizar-se integralmente — a menos que rompa com sua identidade, o que, mais do que impossível, é improvável.

Para isso, teria que fazer como tantos outros fizeram, a partir de Francisco Bernardone, renunciou à riqueza e se tornou, pela santidade, o mais rico de todos os seus contemporâneos, na alegria de servir aos mais pobres de Assis, entre eles os leprosos, aos quais estava vedado o acesso à cidade.

Não passaria na cabeça do filho de um rico empreendedor da atualidade, e de uma bela modelo, assumir votos de humildade e de pobreza. Mas para que viesse a sentir-se realmente rico, seria bom que apeasse de sua Mercedes de dois milhões, usasse veículo mais lento e mais modesto, e, como a maioria imensa dos jovens de sua idade, estudasse e trabalhasse como todos; que, como a imensa maioria das pessoas, aprendesse a viver e a ser um homem como os outros.

morto-por-thor-batistaÉ natural e humano que o pai defenda o filho, ainda que ele possa ser culpado, se assim os fatos provarem. Não se acuse o empresário Eike Batista de ser condescendente com o filho. As vicissitudes do destino, de resto, conhecidas, condenaram-no a ser um pai diferente, e essa diferença pode explicar a prodigalidade que exerce no cuidado com os filhos.

Mesmo que uma investigação séria venha a provar que o ciclista tenha sido desavisado, o jovem Thor não é inocente

Se não houvesse o atropelamento de um homem pobre, Thor continuaria, tranquilo, acumulando pontos negativos em seu prontuário de motorista e andando a velocidades espantosas em seu veículo, prateado e potente, semelhante a uma nave espacial nos vastos confins cósmicos. Mas houve o acidente, como tantos que ocorrem todos os dias no país.

thor-batistaEm todos os acidentes, há culpados e vítimas. Nesse, pelo comportamento de alguns meios de comunicação, e pelo argumento dos advogados, a vítima se transformou em réu. Alega-se, embora haja controvérsias, que o homem de bicicleta provocou a tragédia. Como bem anotou Cláudio Humberto, pelo estado do Mercedes Benz, um dos dois veículos estava em alta velocidade. Talvez a bicicleta.

A opinião pública tem o direito de saber exatamente o que ocorreu. Até agora, a versão divulgada é inaceitável. Ainda que o motorista estivesse sóbrio, isso não significa que houvesse sido prudente. Mesmo que uma investigação séria (porque, até agora, a ação policial não parece ter sido a mais correta) venha a provar que o ciclista tenha sido desavisado, o jovem Thor não é inocente. Os policiais agiram com leviandade, ao liberar o veículo, sem que um legista retirasse do automóvel partes do corpo da vítima. Como houve morte, o veículo teria que ser mantido como prova e minuciosamente examinado.

Como motorista de 21 anos, Thor teve a sua carteira provisória renovada, apesar das multas por excesso de velocidade, e 21 pontos negativos em seu prontuário, conforme as informações divulgadas. Os fatos, assim sendo, não aconselhavam que a ele fosse entregue um automóvel capaz de fazer mais de 300 quilômetros por hora. Dessa imprudência não está isento o pai, que lhe deu de presente o potente veículo.

E há uma constrangedora queixa da família da vítima, a que o empresário Eike Batista deve responder com o dever que lhe cabe: a de que ele teria achado exagerado o gasto de oito mil reais para a recomposição do rosto do morto e as despesas com o sepultamento. O empresário é conhecido pela prodigalidade de seus donativos a obras culturais e filantrópicas. Não parece provável que aja com tamanha insensibilidade nesse caso. Mas, sem prova em contrário, a acusação afetará profundamente a sua imagem de um dos mais arrojados e bem-sucedidos homens de negócios do Brasil.

Voltemos ao início: sem que haja justiça, sem que se busque a igualdade essencial entre todos os homens, e sem solidariedade, não somos livres, e a vida perde o seu sentido, seja ela uma doação de Deus ou milagre do acaso.

 

Fonte: Jornal do Brasil

+ sobre o tema

Pobre Palmares!

  por Arísia Barros União,a terra de Zumbi, faz parcas e...

Olimpíadas de Tóquio devem ser novo marca na luta por igualdade

Os Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968,...

Lei 13.019: um novo capítulo na história da democracia brasileira

Nota pública da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais...

para lembrar

PSDB e PMDB perdem prefeituras; PT, PSD e PSB ganham peso

O PSDB saiu menor das urnas, em comparação...

Em prédio novo, escola de SP não possui itens básicos para estudar.

Prédio novo também continha sobras de material de construção...

Jessé Souza: Escravidão é o que define sociedade brasileira

Reescrever a história dominante de que a corrupção é...

Haddad tem 49%, e Serra, 33%, diz Ibope

O Ibope divulgou, nesta quarta-feira (17), a segunda pesquisa de intenção...

Fim da saída temporária apenas favorece facções

Relatado por Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o Senado Federal aprovou projeto de lei que põe fim à saída temporária de presos em datas comemorativas. O líder do governo na Casa, Jaques Wagner (PT-BA),...

Morre o político Luiz Alberto, sem ver o PT priorizar o combate ao racismo

Morreu na manhã desta quarta (13) o ex-deputado federal Luiz Alberto (PT-BA), 70. Ele teve um infarto. Passou mal na madrugada e chegou a ser...

Equidade só na rampa

Quando o secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, perguntou "quem indica o procurador-geral da República? (...) O povo, através do seu...
-+=