Jesse Jackson: “Agora temos liberdade, mas não somos iguais”

É uma figura icónica. Ajudou a abrir caminho para a presidência de Barack Obama. Lutou lado a lado com Martin Luther King pelos direitos civis de milhões de cidadãos americanos. O reverendo Jesse Jackson, em entrevista na euronews.

euronews: Começamos por uma pergunta num tom mais pessoal: que memórias tem do dia 28 de agosto de 1963?

Jesse Jackson: Lembro-me de chegar aqui – tinha acabado de sair da prisão de Greensboro, na Carolina do Norte, por ter tentado utilizar um serviço público. Havia muita ansiedade, medo e esperança também. Ansiedade, porque não sabíamos se íamos conseguir chegar a Washington e sair de lá. Medo porque, quando se atravessava as fronteiras estaduais num carro com uma matrícula diferente, podia haver problemas. Medgar Evers tinha sido morto no dia 12 de junho, o ambiente estava manchado de sangue. Washington estava virtualmente em estado de sítio. O governo dizia que estava iminente um motim e, na altura, tinha nomeado um presidente da Câmara. Pela primeira vez desde a Lei Seca, fecharam todos os estabelecimentos de bebidas alcoólicas. A polícia fazia turnos de 18 horas. Tinham mobilizado os militares. Era uma cidade em estado de sítio. E, apesar de tudo isto, nasceu uma flor magnífica de brancos e negros, que se juntaram, que se inspiraram uns aos outros, que cantaram juntos. O desejo de liberdade e dignidade era maior do que os que resistiam a dar-nos esses direitos.

euronews: Cinquenta anos depois, como se encontra o “sonho” de que Martin Luther King falava?

JJ: O sonho nunca foi estático. Em 1964, o sonho era acabar com a humilhação. Os soldados negros tinham de se sentar atrás dos prisioneiros nazis. O sonho era acabar com a indignidade. Não podíamos entrar num hotel, não podíamos comer num restaurante público. Esse era o sonho. No ano seguinte, o sonho era tornar tudo aquilo ilegal. Depois, foi obter o direito ao voto. A seguir, foi o direito ao alojamento. O sonho era a campanha dos mais pobres, era acabar com a guerra do Vietname. Agora temos liberdade, mas não somos iguais. A segregação social terminou perante a lei, mas as disparidades tornaram-se maiores.

euronews: Em que ponto estão as relações interraciais nos Estados Unidos? A controvérsia em torno da identificação de eleitores, a tragédia de Travyon Martin, o debate sobre as interceções policiais em Nova Iorque com base no perfil racial – o país arrisca regressar ao passado?

JJ: De várias formas. Travyon Martin foi morto. 136 negros foram mortos, no ano passado, por um polícia ou por um segurança. Não foi só um. Há 2,5 milhões de americanos na prisão; mais de 54% são afro-americanos. O trabalho prisional está a aumentar. As contas de telefone das prisões custam mil milhões de euros por ano. Há empresas cotadas na bolsa que são proprietárias de prisões, como se fosse tudo uma indústria. Há pessoas que passam cinco anos na prisão à espera de julgamento, pior do que em Guantanamo. Há um lado muito feio que mancha a suposta harmonia. Por isso é que há sentimentos contraditórios. Por um lado, o presidente Obama representa o apogeu de uma luta de 54 anos. Por outro, ele está a ser atacado, dizem que não é cristão, que não é americano. E é esse fel que ameaça a harmonia, neste momento.

euronews: Há muita gente que aponta o facto de haver um presidente negro como sinal de que as relações interraciais não são problemáticas nos Estados Unidos. A vitória de Obama decorreu da normalização política ou foi um acidente histórico?

JJ: É um feito histórico, disso não há dúvidas. A junção de forças pelo Bem acabou por vingar. Há americanos que conseguiram articular e circunscreveram a questão da raça, escolhendo a pessoa com mais qualificações. Foi um voto que nos fez sentir bem. Mas houve um outro elemento que se sentiu ameaçado e que não tinha razões para isso. O sul sentiu-se ameaçado pelo nosso progresso. Os direitos civis fizeram com que o sul progredisse. Os investimentos da Honda, da Mitsubishi, da Toyota, o surgimento de equipas desportivas – o novo sul renasceu por causa dos direitos civis. É uma ironia que os que mais beneficiaram sejam os mais amargos e os mais assustados.

euronews: Obama à parte, a comunidade afro-americana ganhou mais força? Vê mais Obamas no futuro?

JJ: Vamos ver mais mulheres, mais pessoas de raças diferentes a ter a coragem de se candidatar. Quando eu me candidatei em 1988, Obama era ainda um estudante. Ele viu os debates e disse para si mesmo que um dia ia conseguir. Ao lançarmos a semente, não sabemos quando é que ela vai germinar. Há mulheres qualificadas, há latinos, há negros – não falta gente qualificada para ser presidente dos Estados Unidos. Há muita gente que pode sonhar com isso. Quando se sonha, as coisas acontecem.

euronews: Qual é a sua maior preocupação hoje em dia?

JJ: A propensão para a guerra deixa-me perplexo, assim como a concentração da riqueza, o desmantelamento da classe média por causa dos défices comerciais, o aumento da pobreza. O aumento da pobreza no nosso país está a atingir uma proporção muito perigosa. Há demasiado ódio, demasiada pobreza. É preciso sonhar para nos erguermos do contexto atual e mudar as prioridades.

 

 

Fonte: Euronews 

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