Jéssica Balbino fala sobre ser mulher, gorda e feminista

Por Jarid Arraes,

Com a intenção de iniciar uma série de textos e debates sobre gordofobia, padrões de beleza e autoestima, o Questão de Gênero traz hoje perguntas respondidas pela Jéssica Balbino, uma mulher jornalista e feminista de Poços de Caldas que trabalha por Direitos Humanos de diversas formas: seja em sua atuação no meio do Hip Hop ou pelos textos e mensagens que escreve sobre inclusão social, sua luta parte do subjetivo para toda a sociedade.

Ouvir o que Jéssica Balbino tem a dizer é extremamente relevante. Há poucos espaços onde mulheres falam abertamente, contam suas vivências e abrem possibilidades para que suas reivindicações gerem empoderamento. É a partir do compartilhamento de declarações como essas que novas correntes se formam entre mulheres que buscam construir uma realidade mais justa.

Abaixo você poderá ler uma entrevista pessoal, cortante e política, completamente na íntegra.

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Você é feminista? Por que?

Sou. Sou feminista porque 15 mulheres morrem por dia no Brasil – e não somos um país em guerra. Sou feminista porque não posso ter o corpo que tenho, porque não posso me comportar como gosto, porque não tenho direito a escolher se quero ou não abortar, porque se eu for estuprada, vão me culpar. Sou feminista porque quero ter os mesmos direitos que os homens, inclusive ao mesmo salário e ao mesmo trabalho. Sou feminista porque este corpo é meu e NINGUÉM tem o direito de dizer como devo me vestir, como devo me comportar. Sou feminista porque sou passada de vítima à culpada em questão de segundos, quando procuro meus direitos. Enfim, SOU FEMINISTA PELO DIREITO DE SER MULHER. E ser mulher é ser humana.
Eu poderia ficar séculos discorrendo o porque de ser feminista (ou extremista, como alguns gostam de colocar), mas é por apenas uma questão óbvia: quero ser mulher sem ser agredida por isso.

Qual a importância política de se sentir bem com o próprio corpo?

FUNDAMENTAL. Se eu não estiver bem com o meu corpo, vou sofrer ainda mais violências por ser mulher. Politicamente, precisamos nos reconhecer como mulheres para existirmos. Não adianta nos curvarmos a um padrão inatingível de beleza do corpo. Só luto quando me sinto bem e este “sentir-se bem” tem a ver com aceitação do próprio corpo.

Posso falar por mim que se eu não me entender como mulher, não posso cobrar os meus direitos. E como mulher e gorda, estou aqui para lutar por acessibilidade às pessoas gordas. Não temos “necessidades especiais”, mas vivemos em um país onde segundo a última pesquisa feita pela VIGITEL, mais de 50% dos brasileiros tem sobrepeso, o que significa que precisamos de assentos maiores nas cadeiras, nas poltronas de avião, nos bancos dos ônibus, nas poltronas de restaurantes, de mais espaço entre as mesas fixas nas grandes redes de fast-food, de cintos de veículos automotores maiores (a maior parte não fecha e você pode ser multado por estar sem cinto, o que te obriga, diretamente, a se encaixar no padrão da sociedade e ser magro), precisamos de mais espaços nas roletas de ônibus, metrôs e trens, entre outras coisas, isso para citar apenas o superficial.

Se eu sou gorda, trabalho, vivo, existo e pago meus impostos, por que não ter acesso a tudo? Por que não posso me sentar confortavelmente em uma cadeira de cinema? Por que devo me adequar a um padrão?  Aí, vem o famigerado discurso sobre saúde para defender um preconceito, uma imposição. Ando com cópia de exames feitos recentemente provando que sou saudável. E então? Sou eu que devo mudar ou a sociedade que deve parar de me escravizar?

Gordofobia não é crime. Mas discrimina e mata e precisamos estar bem, sendo gordos e nos reconhecendo como tal para cobrar direitos. Para mim, essa é a importância política de nos sentirmos bem no corpo que temos.

Vivemos num universo em que são ditados – de todos os lados – padrões inatingíveis de beleza. É muito difícil ser gorda, afrodescendente e não se enquadrar nos traços finos que são impostos. É mais difícil ainda quando antes dos 30 anos você percebe/descobre que tem alopécia androgenética, ou seja, que está perdendo os cabelos e que antes mesmo dos 35 estará completamente careca. Então, se você não se sentir bem com seu corpo, faz o quê? Se mata?! Por que é isso que muitas mulheres tem feito, de maneiras diferentes, no Brasil. Elas se matam por meio do suicídio, se matam tomando anabolizantes, se matam tomando hormônios, se matam tomando remédios para emagrecer, para engordar, para aguentar a jornada na academia, para crescer cabelo, para cairem os pelos, para terem um corpo de acordo com o ideal disseminado. E isso é muito triste. Resolvi que não quero me sentir mal. Entendi que só tenho essa vida e que quero vivê-la plenamente e que se isso significa estar fora dos padrões e lutar pelas mulheres, é isso que vou fazer.

Cansei de ver minhas semelhantes se matando, o tempo todo, e sendo mortas, por não atingir o padrão ideal. Esses dias vi uma reportagem em que HOMENS DÃO DICAS SOBRE COMO DEVEM SER AS MULHERES QUE ELES GOSTAM DE PEGAR! E aí os caras diziam que elas não poderiam ter pelos – peraí, e quem não tem pelos? – que elas deveriam ter as unhas bem feitas e pintadas, que elas deveriam ter cabelos longos, curtos, enrolados, lisos, que elas deveriam ter a barriga negativa, quer dizer, mesmo que a mulher se esforce para o resto da vida, nunca atingirá certos padrões, já que eles são impostos e ao mesmo tempo subjetivos, ou seja, cada um tem o seu, especialmente os homens machistas.

Enquanto vivermos em busca de padrões, seremos vítimas de violência e escravizadas pelo machismo. Sentir-se bem com o próprio corpo é ser livre. E ser livre é poder ser feliz como você é. Somos únicas. Cada uma de nós. E temos tantas outras qualidades que vão além de um corpo que se encaixe no padrão imposto. Não concordo por exemplo quando dizem que estou ‘acima’ do peso. Quem limitou o que é um peso ideal e por que meu peso não é o ideal? É ideal para mim, certo?! É como sou e eu tenho o DIREITO de ser feliz assim.

De que forma os padrões de beleza limitam a liberdade das mulheres?

De todas as formas possíveis. Os padrões de beleza escravizam as mulheres. A partir do momento que você fica presa a ter um corpo ou um visual que agrade outra pessoa, você já é escravizada. É uma vontade dela e não sua, mas muitas vezes atendê-la depende da sua felicidade e bem estar, afinal, vivemos em sociedade e essa convivência também depende de aceitação.

Eu fico muito triste quando vejo as mulheres se submetendo a tratamentos, jornadas ou violência contra si mesmas para agradar ou atingir o padrão de beleza. É inevitável que muitas vezes eu as julgue, mas quando penso mais friamente, tenho pena e pena é um sentimento muito ruim, mas consigo entender que todos somos vítimas disso e não ser aceito sendo o que você é como ser humano – física e mentalmente – é muito doloroso.

Não atingir os padrões é estar excluído da sociedade. É ser motivo de piada, de discriminação, de limitação. Uma mulher gorda e “feia” é tolhida em vários direitos. É motivo de nojo, de escárnio, de retaliação, de mortes. É muito triste saber que mulheres são limitadas por conta de um padrão físico. É dolorido. É urgente que trabalhemos na autoestima das mulheres, inclusive das que são vítimas dessa escravidão.

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Como você percebeu que esse tipo de violência existia?

Desde os quatro anos de idade, quando fui impedida de brincar na escola por ser gorda. Desde então, me tornei A GORDA da turma – fosse na escola, no bairro, na faculdade ou no trabalho – e carregar este estigma é muito mais pesado que o corpo. Ser mulher e gorda é sofrer violências diárias, inclusive dentro de casa.

Seus pais – por amor ou preconceito mesmo – não te querem gorda. Isso fará você sofrer e nem eles te aceitarão. Então, a obrigatoriedade de ser magro se torna um objetivo, uma meta, um carma. E ai de você se não for. A imposição da mídia, de seus amigos, do mundo, é extremamente complicado. NÃO EXISTE DOR MAIOR DO QUE OUVIR: “VOCÊ TEM UM ROSTO LINDO!”. Como assim?! E meu corpo? E meus quilos “extras”, e minhas curvas, e minha barriga – que sim, é saliente, mas é minha parte – , então, somos violentadas o tempo todo, quando nos impõe padrões.Que vão também além disso, mas para o fato de sermos depiladas, com as unhas feitas, os cabelos macios, volumosos e sedosos, os seios e a bunda grande, a cintura fina, a sobrancelha bem feita, entre outras coisas. E não há outro tipo de assunto por onde se circule. Eu, sinceramente, me canso de ter que “me inserir” em rodas discutindo padrões. Eu sou fora deles, mas parte do mundo e vou lutar enquanto existir pela não padronização e não violência contra a mulher, impondo e dizendo como ela deve ser.

Por exemplo, quando cria-se uma “escola de princesas”, segrega-se a mulher e comete uma violência contra a que não é – e nem quer ser – princesa. Quem disse que precisamos ser prendadas e boas esposas? E por que precisamos ser assim? Por que não podemos apenas ser amadas pelo que somos e ter a nossa vida e nossas habilidades favorecidas? Por que precisamos ser forçadas a sermos o que não somos para agradar o mundo? Tá tudo errado…. Cansei de ser agredida e violentada.

É difícil encontrar espaço para falar de questões do corpo na política?

Poxa, é muito difícil. E olha que eu sou comunicadora, hein. Já tomei várias “chamadas” por preencher a timeline virtual com assuntos sobre feminismo e gordofobia, mas não vou mudar. Falo porque é urgente. Assim como falo de política, de exclusão social, de artes. E não, não acho que podemos relaxar e gozar quando o mundo exclui, machuca e mata as mulheres – especialmente as “fora de padrão”. Só me permitirei fazer isso quando nenhuma outra mulher for violentada e morta por simplesmente ser o que ela é.

Já perdi “amigos” e entrei em discussões intermináveis por ser eu mesma: GORDA, MULHER e FEMINISTA. E vai ser assim, enquanto eu souber que minhas semelhantes são inferiorizadas, excluídas e violentadas apenas por serem de um ‘gênero’ diferente.

O espaço da coluna é muito bacana e a “liberdade” da rede também, mas ainda discute-se muito pouco sobre isso. Fala-se e chama-se atenção minoritariamente sobre estas questões, que são também políticas. Você já viu uma política pública eficaz para a não violência contra a mulher? Uma política pública para a aceitação do próprio corpo? Só se vê o inverso: políticas públicas excludentes e misóginas.

Mas, é extremamente complicado levantar questões sobre isso onde quer que seja. Sou sempre tirada de louca, mas luto, debato e bato o pé onde quer que seja. Precisamos empoderar a mulher e mais do que isso, lembra-las de que independente da forma, não temos forma. Precisamos nos aceitar. Vejo muito machismo dentro do meio feminista, quando, as próprias integrantes do movimento não se aceitam. Vejo machismo entre as mulheres. Mas não posso julgar, devo ajudar. Devo falar, ocupar lugares.

Na sua opinião, há muita diferença entre os padrões de beleza masculinos e femininos?

É complicado saber, mas como mulher percebo uma cobrança muito grande. Tanto por parte dos homens, como por parte das mulheres. Não vejo isso com os homens, mas também não estou do lado deles. Acho que o culto à beleza existe para todos os gêneros, independente de ser homem, mulher, travesti, etc. Mas, como mulher posso dizer que ele é INSUPORTÁVELMENTE DOLOROSO.

Você acha que a pressão contra mulheres gordas é maior do que a pressão contra homens gordos? Por que? 

Acho que é sim porque é uma pressão dupla, contra a mulher e contra o corpo dela. As mulheres são mais “inferiorizadas” e com isso, o preconceito e a pressão são maiores. Não que os homens não sofram, mas a mulher, por conta do gênero, é mais atacada, o tempo todo.

O que você gostaria que as pessoas soubessem a respeito das mulheres gordas?

Que somos MULHERES! Que existimos para além do nosso corpo gordo, que insistem em criminalizar, mas que somos saudáveis, que somos vivas, que gozamos. Sim, mulheres gordas gozam, como você mesma já pontuou. Que usamos roupas (inclusive das da moda), que consumimos, que comemos, trabalhamos e nos divertimos. E que temos direito a isso tudo, inclusive com nosso corpo gordo. Gostaria que soubessem que vamos lutar contra a GORDOFOBIA e vamos exigir respeito. É isso. Obrigada pela oportunidade.

Fonte: Revista Forum

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