Jornalismo parcial

Como a cobertura sobre as ocupações da madrugada do dia 13 de abril, em São Paulo, demonstra a parcialidade das emissoras de televisão e um viés que tende a criminalizar o movimento de moradia

Por Maria Carolina Trevisan, do Medium 

A cobertura jornalística de movimentos e políticas sociais exige mais do que técnica. Como mínimo, é preciso conhecimento específico sobre o tema em questão: seu contexto de produção, o histórico que o envolve, os interesses que reflete, a legislação a que contempla, os dados correspondentes ao quadro social, as fontes diversas e a responsabilidade do Estado em relação à questão abordada. Para serem completas, sobretudo, as reportagens que envolvem a dimensão social precisam contar sobre as pessoas — e como vivem diante de determinada situação.

Foto: Maurício Lima
Foto: Maurício Lima

Na madrugada da segunda-feira passada (13/4), a Frente de Luta por Moradia (FLM) promoveu uma série de ocupações na cidade de São Paulo a imóveis e terrenos abandonados. O objetivo era chamar a atenção para o déficit de moradia na capital mesmo com tantos imóveis sem função social. A rede Jornalistas Livres registrou, naquela madrugada e nos dias seguintes, como se deram essas ações de dentro das ocupações, as histórias das pessoas e lideranças, o contexto político em que aconteceram.

As ocupações despertaram também o interesse das empresas de jornalismo, especialmente dos telejornais de emissoras abertas. Os primeiros repórteres chegaram aos edifícios ocupados a partir das 5 horas da manhã, quando puderam ter contato com dirigentes da FLM, coordenadores das ocupações, supostos “donos” dos prédios e com policiais. A tradução do que viram, no entanto, em 100% dos programas de TV que exibiram as matérias, saiu enviesada e tendenciosa.

Em primeiro lugar, chamaram as ocupações de “invasões”, como se as ações tivessem se dado aleatoriamente a qualquer imóvel, sem considerar que aqueles não cumprem função social, não pagam impostos e muitos estão desapropriados e, portanto, pertencem ao Estado. “Invasão” não é sinônimo de “ocupação”. Essa abordagem faz com que o telespectador, automaticamente, veja os integrantes do movimento de moradia como um grupo fora da lei que ameaça a propriedade privada — e pode entrar na sua casa e tomar o que é seu a qualquer momento. Um gravíssimo erro.

Foto: Rodrigo Zaim / R.U.A Foto Coletivo
Foto: Rodrigo Zaim / R.U.A Foto Coletivo

Os movimentos de moradia organizados não são constituídos por “invasores”, “drogados”, “vagabundos”ou “bandidos”. Ao contrário, estão lotados de gente que trabalha e não ganha o suficiente para pagar um aluguel e, ao mesmo tempo, comprar comida. São idosos e idosas, mães, crianças, jovens, homens e mulheres que acreditam no direito de poder pagar por uma moradia digna. Não querem nada de graça, como pode parecer. Também não são “coitadinhos” ou “ignorantes”. São pessoas engajadas, que conhecem bem seus direitos, que seguem regras de convivência e que respeitam os outros.

Criminalizar o movimento de moradia, com uma cobertura superficial e tendenciosa, não é jornalismo.

A TV Bandeirantes foi além. Deu voz a um senhor que disse ser o proprietário do imóvel ocupado na rua Conselheiro Furtado, no centro de São Paulo. A reportagem da emissora sequer checou a informação. Não entrevistou nenhuma fonte da Frente de Luta por Moradia ou qualquer outra. E supôs como verdade o que esse senhor dizia. Acontece que, na hora da ocupação, a versão que o senhor Sérgio deu aos Jornalistas Livres foi outra.

Confira, a seguir, a abordagem da Band e das principais emissoras de televisão sobre os atos e compreenda o viés jornalístico da cobertura. Em alguns casos, os equívocos se dão durante a edição, ainda que o repórter tenha tido cuidado. Em outros, a negligência acontece desde o início, com apuração fraca, preconceituosa e nenhum conhecimento sobre o tema.

  1. O recorte da Band x o que foi declarado para Jornalistas Livres:

No vídeo acima, destacamos a controvérsia entre a versão da fonte em um primeiro momento, e sua alegação horas depois, argumentação comprada pela Band sem questionamento. Na reportagem completa da Band há um baixíssimo nível de jornalismo. A entonação da repórter deixa evidente a escolha de um lado. O uso das palavras, idem. A matéria supõe que a versão verdadeira é daquele que se diz dono do imóvel, sem checar, sem entrevistar outras fontes, sem avaliar documentos, sem compreender o movimento de moradia, sem considerar a função social da propriedade. O comentário final do apresentador fecha a reportagem tendenciosa do programa Café com Jornal, da Band.

2. Emissora: Rede Record
Programa: Balanço Geral

militante-sem-teto

Foi a primeira a chegar em uma das ocupações, por volta das 5 horas da manhã (a ação de ocupar o imóvel começou por volta de meia noite). Apesar de dizer que os imóveis foram “invadidos”, foi a única emissora que mostrou entrevista com Carmen Silva Ferreira, dirigente da Frente de Luta por Moradia. Foi também a única TV que citou a violência da Polícia Militar, que atingiu no rosto, com bala de borracha, uma idosa. Também registrou que a PM não quis se pronunciar, uma informação relevante diante do contexto de violência.

3. Emissora: Globo
Programa: Hora 1

g1

A TV Globo chegou à ocupação quase uma hora depois da Rede Record. Pegou a entrevista com Carmen Silva Ferreira, dirigente da Frente de Luta por Moradia, em andamento e apenas citou parte das declarações, sem mostrar a entrevistada. Disse que a polícia “teria usado” bombas de gás lacrimogêneo e que uma idosa “teria ficado ferida em um tumulto”, quando na verdade a senhora foi atingida por uma bala de borracha lançada pela PM. Tumulto? O texto usa a conjugação verbal no Futuro do Pretérito (“teria usado”, “teria ficado”) para colocar em dúvida um fato grave, como a violência policial desnecessária e que teve vítima. No final, atesta que a pessoa que estava no local é o “proprietário” e que a loja foi “depredada” (o que não aconteceu, como mostra trecho desta reportagem), informações que obteve sem checar — princípio básico do jornalismo. A apresentadora foi correta na abertura da reportagem.

4. Emissora: Globo
Programa: Jornal Hoje

g12

No Jornal Hoje a apresentadora começa usando o verbo “invadir” e o repórter segue o mesmo texto. A reportagem teve a diferença de mostrar a ocupação, no dia seguinte, de dentro, e entrevistar uma pessoa que participou. Mostra a negociação pacífica entre as partes para a retirada de carros do edifício ocupado. Porém, fecha com a declaração unilateral do Ministério Público que classifica a ação como “tática equivocada” e ameaça o movimento sugerindo “retirar do cadastro os ocupantes que utilizarem essa tática”. Não problematiza essa ideia, escolhendo um lado.

5. Emissora: SBT
Programa: Jornal do SBT

sbt

A reportagem “Grupos de sem-teto organizam invasões em São Paulo”, do Jornal do SBT, comete um erro logo de início. Diz que as ações foram promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que não tem nada a ver com a situação retratada. O uso de palavras também demonstra o viés da cobertura, como por exemplo quando diz “Um vizinho, assustado, gravou o momento da invasão”, supondo que o vizinho estivesse assustado. Afirma, ainda, que o prefeito Fernando Haddad disse que esses sem-teto não terão prioridade nos programas de habitação. Mas a fala do prefeito é, na verdade: “tudo o que está sendo adquirido tem que respeitar uma prioridade dada pelo Minha Casa Minha Vida.”

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