Há 30 anos ela criou grife com inspiração na África para reafirmar identidade: “Hoje batem palma para mim, mas eu tive que ter muita personalidade e resistência”.
Por Ryot Studio e Cubocc, no Huffpost Brasil
Hoje não é difícil encontrar nas ruas das grandes metrópoles jovens, adultos e até crianças vestindo peças que remetam à cultura africana. Cores, estampas e combinações antes vistas como excêntricas entraram de vez como costume dos brasileiros. E se tem alguém que contribuiu, e muito, para este cenário foi Josina Cunha, de 71 anos. Há 30 anos, a professora criou a grife Afrojô, de vestuário afrobrasileiro e uma das pioneiras neste nicho de mercado. Hoje, ao ver a profusão de marcas que exaltam o estilo, ela se diz contente e afirma: “quanto mais, melhor!”
Filha de um pai nascido em 1882, em plena vigência da Lei do Ventre Livre, Josina teve uma infância difícil. A mãe morreu antes dela completar dois anos de idade, e a criação ficou a cargo de uma entre os seus 19 irmãos mais velhos, e a ela quem chama de mãe. “Foi ela quem eu reconheci como mãe, minha referência. Foi uma mulher que não teve filhos biológicos e o tempo todo me fortalecia, me jogava para cima e nunca deixava que as pessoas me magoassem naquele ambiente já tão fechado entre nós”, relembra Josina.
Ninguém tem noção do que eu passei na faculdade.
O ambiente a que ela se refere é o quilombo urbano que a família de Josina teve que criar, no bairro carioca do Grajaú, para amenizar as mazelas do racismo que rondava aquele bairro: “A gente tinha que se apoiar o tempo inteiro uns nos outros, porque queriam o tempo todo que a gente se tornasse serviçal”, afirma. Além desta, só havia mais outras duas famílias negras no bairro.
Por este motivo, Josina afirma que sua militância começou no momento em que ela nasceu, mas se fortaleceu quando percebeu o carinho e o cuidado com que era criada, para que ela pudesse resistir à realidade racista. Quando a família foi expulsa do terreno próprio em que moravam, para manutenção da reserva florestal do bairro, o quilombo se desfez. Josina e a mãe foram morar em Guadalupe, um bairro ainda mais afastado da região central.
Nas aulas, Josina conta que se destacava pela sua inteligência, mas que cursar uma faculdade não era sequer algo visto como possibilidade. Até que um professor insistiu para que ela tentasse furar a bolha do racismo e entrar numa universidade pública: “Eu argumentei que todo mundo tinha cursos, pré-vestibular. Então ele me convidou a assistir a aula de revisão no Colégio de Aplicação da UERJ todos os sábados”.
A gente tem muito medo de ancestral, mas ele nos ajuda mesmo quando a gente não percebe.
“O que seria de mim se não fosse a raiz do meu pai, da minha mãe, dos meus irmãos?
Deu certo. Em 1968, Josina foi aprovada em sétimo lugar no curso de pedagogia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Novamente, ali havia ela e mais dois negros, apenas. “Era a época do AI-5. Ninguém tem noção do que eu passei. Minha mãe ficou enlouquecida, porque ela via as pessoas dizendo que matavam, prendiam, desapareciam e não queria que eu fosse mais para as aulas. Ela dizia que eu era preta e ficava assustada”, relembra.
A preocupação comum a qualquer mãe não foi suficiente para impedi-la, e seis anos depois, dois acima do habitual, já que ela tinha que conciliar estudos com o trabalho para pagar suas contas, formou-se. O processo, entretanto, não foi fácil. Josina relembra que passou por crises de ausência durante o curso, porque “a realidade era muito dura”, mas sem querer entrar em maiores detalhes.
“Eu acho que foi a forma do meu organismo suportar aquele medo e aquela dor. Eu nunca mais tive isso. Ou, de acordo com a minha religião, talvez já tenha sido algo espiritual me segurando mesmo que eu não soubesse ainda. Até meus ancestrais. Como eu sou filha do meu pai, hoje eu entendo que a ancestralidade nos ajuda muito. A gente tem muito medo de ancestral, mas ele nos ajuda mesmo quando a gente não percebe. É a nossa base, a nossa raiz. O que seria de mim se não fosse a raiz do meu pai, da minha mãe, dos meus irmãos?”, avalia a empreendedora.
Eu acho que foi a forma do meu organismo suportar aquele medo e aquela dor.
Com base em sua raiz, Josina levou todo seu conhecimento e as características de exaltação da cultura afrobrasileira para dentro das salas em que lecionou: “Eu trabalhava em Madureira. As pessoas vinham dos morros do bairro e eu sentia que aquelas crianças precisavam de algo a mais do que eu tinha para ensinar. Então eu já praticava a lei 10.639, sancionada há 15 anos, desde essa época, muito antes dela existir. Eu já fazia esse resgate”, afirma.
Josina era a professora que levava para a sala de aula essa formação contra o racismo. Formado em português-espanhol, ela mostrava a cultura hispânica mas também a cultura africana. “Era muito legal, porque meus alunos adoravam. A direção que não entendia muito bem. Toda vez que tinha questionamento sobre racismo eu parava e fazia um debate bem aprofundado com as crianças, e eu era a única que fazia. Às vezes você encontrava uma pessoa ou outra que falava, mas só”, analisa ela, com uma fala segura mas nunca prepotente.
Eu já praticava a lei 10.639, sancionada há 15 anos, desde essa época, muito antes dela existir.
A união da sua experiência na sala de aula, o combate ao racismo, o histórico familiar e uma lembrança nada agradável sobre sua relação com as roupas – “eu também usei muita roupa dos outros” – fez com que a Afrojô surgissse. Uma colega com familiares nigerianos era a ponte entre Josina e os tecidos originais do continente da África. “Nunca tive loja mas sempre vendia para um público cativo, porque eu era a única. Vesti muitos desfiles dos blocos afro do Rio de Janeiro, porque não tinha ninguém e eu fazia tudo”, relembra.
Como ela mantinha uma grife pioneira, também fez cursos de pinturas e tecidos e muitas outras especializações relacionadas à moda. Josina conta que sempre teve uma preocupação muito grande em criar um vestuário que fosse a cara do povo afrobrasileiro.
“Eu costumo dizer que não somos africanos, mas afrobrasileiros: é uma união de lá e cá. Quando eu comecei, eu pesquisava a indumentária de lá e fazia um resgate adaptado para a nossa realidade. Comecei a usar os tecidos primeiro, depois as cores, até encontrar a identidade mais próxima da nossa realidade brasileira”, explica a professora.
Eu estou muito feliz porque vejo jovens muito envolvidos nessa coisa de se mostrar.
Com o passar dos anos, outras marcas do mesmo nicho surgiram. Josina, claro, vê a ampliação da moda com bons olhos. “Eu acho tudo lindo, lindo, lindo. Hoje não é só a marca de roupa: é o cabelo, a maquiagem, a postura, a presença negra com a sua identidade. E eu estou muito feliz porque vejo jovens muito envolvidos nessa coisa de se mostrar”, afirma.
Ao HuffPost Brasil, Josina deixa a modéstia de lado para concordar que é pioneira em um nicho que não para de crescer. Mesmo assim, não esquece os passos que a trouxeram até aqui, ao mesmo tempo em que abria caminho para os mais jovens. Não guarda mágoas, mas lembra que toda a estrada tem um começo.
“Na minha época era vergonhoso, as pessoas riam de mim. Parecia que eu era de outro mundo: na faculdade era de outro mundo, onde eu morava, também. Hoje batem palma para mim, mas eu tive que ter muita personalidade e resistência”, conta, para sorte de quem pode ler, ouvir e aprender.