Justiça brasileira condena réu acusado da prática de crimes de racismo na Internet

Leia, na íntegra, decisão da Justiça

Fonte: Afropress –

 

Brasília – Os desembargadores Roberval Casemiro Belinati, relator, e Silvanio Barbosa dos Santos, revisor, e mais o vogal, desembargador Sérgio Rocha, foram unânimes no voto de condenação ao estudante Marcelo Valle Silveira Mello.

“Ao tratar os negros como “macacos”; “pobres e sujos”; “subdesenvolvidos” e “burros”, além de fazer uma série de comentários que inferiorizam a raça negra e sua cultura, inegável que o réu os considera como seres inferiores, não havendo dúvidas, portanto, de que sua conduta é racista”, afirmam os desembargadores em decisão histórica.

É a primeira decisão da Justiça brasileira que condena um réu acusado da prática de crimes de racismo na Rede Mundial de Computadores.

Veja, na íntegra, a decisão da 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça de Brasília e Territórios.

APELAÇÃO CRIMINAL INTERPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO CONTRA SENTENÇA QUE ABSOLVEU O RÉU DO CRIME DE RACISMO PRATICADO NO “ORKUT”, SITE DE RELACIONAMENTOS DA INTERNET. ART. 20, § 2º, DA LEI Nº 7.716/1989. AUTORIA, MATERIALIDADE, ADEQUAÇÃO TÍPICA E ELEMENTO SUBJETIVO COMPROVADOS. SENTENÇA REFORMADA. CONDENAÇÃO IMPOSTA. RÉU SEMI-IMPUTÁVEL. CONTINUIDADE DELITIVA. PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE SUBSTITUÍDA POR RESTRITIVAS DE DIREITO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

1. O réu praticou o crime de racismo, de preconceito contra a raça negra, porque, ao fazer críticas ao sistema de cotas adotado pela Universidade de Brasília, escreveu em várias mensagens que divulgou pelo site de relacionamento denominado “Orkut”, da rede mundial de computadores – Internet, que os “negros são burros, macacos subdesenvolvidos, fracassados, incapazes, ladrões, vagabundos, malandros, sujos e pobres”.

2. Sendo as expressões racistas, de preconceito contra a raça negra, não há que se falar que elas estariam protegidas pela livre manifestação de pensamento, assegurada pelo art. 5º, inciso IV, da Constituição Federal, porque esta não justifica a prática de qualquer crime.

3. O réu agiu com dolo intenso porque, nas mensagens que divulgou, reiterou as expressões ofensivas à raça negra.

4. O fato de o réu ter sido considerado semi-imputável pelo laudo técnico que concluiu que ele era capaz de entender o caráter ilícito do fato que praticou, não sendo inteiramente capaz, no entanto, de determinar-se de acordo com esse entendimento, não o isenta de pena, mas apenas confere-lhe o direito de ter a pena reduzida de um a dois terços, segundo dispõe o artigo 26, parágrafo único, do Código Penal.

5. Deve o réu responder por crime continuado, de acordo com o previsto no artigo 71 do Código Penal, porque divulgou as três mensagens preconceituosas no mesmo contexto em que fazia críticas ao sistema de cotas adotado pela instituição de ensino. Assim, as três mensagens ofensivas não caracterizam o crime de racismo na modalidade do concurso material, previsto no artigo 69 do Código Penal.

6. Recurso conhecido e parcialmente provido para reformar a sentença e condenar o réu nas sanções do art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/1989, combinado com o artigo 71do Código Penal, aplicando-lhe a pena de 01 (um) ano e 02 (dois) meses de reclusão, em regime inicial aberto, e 07 (sete) dias-multa, calculados à razão de 1/30 (um trinta avos) do salário mínimo vigente à época dos fatos, sendo substituída a pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direitos, a serem fixadas pelo Juízo da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal.

ACÓRDÃO

Acordam os Senhores Desembargadores da 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, ROBERVAL CASEMIRO BELINATI – Relator, SILVÂNIO BARBOSA DOS SANTOS – Revisor, SÉRGIO ROCHA – Vogal, sob a Presidência do Senhor Desembargador SILVÂNIO BARBOSA DOS SANTOS, em proferir a seguinte decisão: RECURSO CONHECIDO. DAR PARCIAL PROVIMENTO. UNÂNIME, de acordo com a ata do julgamento e notas taquigráficas.
Brasília (DF), 3 de setembro de 2009

RELATÓRIO

Cuida-se de APELAÇÃO CRIMINAL interposta pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios contra a sentença que absolveu Marcelo Valle Silveira Mello da acusação de ter infringido o disposto no art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/89, por três vezes, nos autos da ação penal nº 2005.01.1.076701-6, em curso perante o MM. Juízo da Sexta Vara Criminal da Circunscrição Judiciária de Brasília/DF (fls. 353/382).

A denúncia narrou os fatos nos seguintes termos (fls. 02/07):
“[…] Nos dias 14 de junho, 12 e 13 de julho de 2005, no site de relacionamento denominado „Orkut‟, da rede mundial de computadores – Internet -, o denunciado, de forma livre e consciente, praticou preconceito da raça negra.

Contrário ao sistema de cotas adotado pela Universidade de Brasília – UnB, Marcelo Valle, nas referidas datas, ofendeu os negros chamando-os de „burros‟, „macacos subdesenvolvidos‟, „ladrões‟, „vagabundos‟, „malandros‟, „sujos‟ e „pobres‟.
No dia 14 de junho de 2005, às 05h18m, o denunciado lançou as seguintes mensagens preconceituosas:

„(…) E VCS, FICAM AÍ PAGANDO PAU DA ÁFRICA, AQUELE BANDO DE MACACOS SUBDESENVOLVIDOS, QUERENDO ATRIBUIR VALOR A ESSA „CULTURA‟ NEGRA QUE SÓ TEM MÚSICAS SEM SENTIDO E TOSCAS QUE NÃO FAZEM MAIS QUE PROMOVER ORGIAS SEXUAIS .. PAU DAQUELE PRETO DOS PALMARES LÁ .. BAH …
VOU JOGAR A REAL PRA VCS, SEUS MACACOS BURROS, EU NÃO SOU BRANCO COMO VCS TAMBÉM NÃO SÃO PRETOS … AMBOS TEMOS MISTURA DE RAÇA NESSA PORRA … AGORA VEM COM ESSE NEGÓCIO DE COTAS .. QUER DIZER QUE AGORA VCS QUEREM JUSTIFICAR A COR PRA CULPAR A GENTE DO FRACASSO DE VCS .. TOMAR NO CU …
(…) DEPOIS FICAM PERGUNTANDO PQ SE FORMA ESSES GRUPOS NO BRASIL … COM ESSES MACACOS FALANDO BOSTA ESTILO O DONO DESSA COMUNIDADE .. ATÉ ME DÁ VONTADE DE VIRAR UM SKIN-HEAD TAMBÉM .. SÓ ACHO QUE ELES TÃO PERDENDO TEMPO PQ VCS MACACOS VÃO ACABAR NA PRISÃO MESMO.
PRETO NO CÉU É URUBU, PRETO CORRENDO É LADRÃO, PRETO PARADO É BOSTA.
QUAL A DIFERENÇA ENTRE O PRETO E O CÂNCER
R: O CÂNCER EVOLUI!
ACABOU … AGORA VÃO LÁ PEGAR O CADERNO E MOSTRAR PRO MUNDO, SKIN-HEADS, BRANCOS E TODOS AQUELES „RACISTAS‟ QUE VCS INSISTEM EM DIZER, QUE VCS NÃO SÃO MOGOLOIDES E TEM A MESMA CAPACIDADE DE TODOS .. VÃO ESTUDAR SUA CAMBADA DE VAGABUNDO…
JÁ NÃO BASTA PRETO ROUBANDO DINHEIRO .. AGORA ELE TAMBÉM ROUBA VAGA NAS UNIVERSIDADES … O QUE MAIS VAI ROUBAR DEPOIS?‟
Ainda no dia 14 de junho de 2005, o denunciado, no profile de „Claudiomar Maranhão‟, integrante do site de relacionamento „Orkut‟, lançou a seguinte mensagem preconceituosa:
„EH MACACO,
INFELIZMENTE EM UNIVERSIDADE PÚBLICA NÃO DÁ CAMARADA, PRA BRANCO PASSAR PRECISA TIRAR 200, E PROS MACACOS PASSAREM EH SOH TIRAR – 200 .. UHAUHAUHHAUHA .. COMO MINHA FAMÍLIA TEM GRANA DIFERENTE DESSE MACACOS POBRES E SUJOS .. PAPAI PAGA PARTICULAR PARA MIM .. QUE POR SINAL EH MELHOR QUE A PÚBLICA …
TO POCO ME FUDENDO TAMBÉM .. ESSES PRETOS VÃO EH ESTRAGAR A UNIVERSIDADE PÚBLICA MAIS DO QUE JÁ ESTRAGARAM … NÃO SABEM NEM ESCREVER …
E TA FALANDO O OQ O MACACO … VC NÃO EH TÃO PRETO ASSIM NÃO .. E TEU PROFILE TA IGUALZINHO O MEU … O QUE DIABO VC EH .. QUER QUE UM NEGÃO COMA TEU CU NA UNIVERSIDADE EH?‟

No dia 12 de julho de 2005, às 14h26m, no site de relacionamento „Orkut‟, o denunciado, com vontade livre e consciente, expressou-se da seguinte maneira:
„PRA VCS QUE NÃO PASSARAM NA UNB AQUI VÃO AS INSTRUÇÕES
DECLARE-SE NEGRO:
1 – TOME UM BANHO DE SOL
2 – APLIQUE CERA NO CABELO PARA ELE FICAR BEM DURO
3 – COLOQUE UMA CAMISETA ESCRITO „BLACK POWER‟ OU QUALQUER COISA LIGADA AO REGGAE, SE FOR MULHER COLOQUE TRANÇAS NO CABELO … QUANTO MAIS NEGRO VC PARECER MELHOR
4 – CHEGANDO NO DIA DA AVALIAÇÃO, USE GÍRIAS DA COMUNIDADE AFRO ESTILO „E AÍ MANOW‟ OU SEJA, GÍRIAS EXTRAÍDAS DAQUELES RAPS DE FAVELADOS
APÓS ISSO É QUASE CERTEZA QUE VC VAI CONSEGUIR ENTRAR NAS COTAS, POIS NESSE PAÍS DE RETARDADOS ELES AINDA NÃO ENTENDERAM QUE NÃO EXISTEM 100% NEGROS E 100% BRANCOS … E CONTINUAM ACHANDO BONITO AUMENTAR O PRECONCEITO E COLOCAR ANALFABETOS PARA DESTRUIR COM O CONCEITO DA UNIVERSIDADE…
APÓS SE DECLARAR NEGRO, VÁ PARA A PROVA E PREENCHA COMO SE FOSSE UM CARTÃO DE LOTERIA, AFINAL, QUEREM UM EXEMPLO, PARA PASSAR PARA ENGENHARIA CIVIL SENDO BRANCO: NF DE 200, SENDO NEGRO: NF DE 120 .. ENTEDERAM NÉ …‟

No dia 13 de julho de 2005, às 06h27m, no site de relacionamento „Orkut‟, o denunciado, ao criticar o sistema de cotas adotado pela Universidade de Brasília – UnB, voltou a ofender a raça negra, dizendo:
„(…) VCS TÃO PUTOS PQ TOQUEI NA FERIDA DE VÊS, NA FERIDA DE COMO VCS MALANDROS DESOCUPADOS ENTRARAM NA UNB ROUBANDO A VAGA DE UMA PESSOA CAPAZ .. ISSO QUE DEVERIA SER CRIME NESSE PAÍS ..‟ […]”. (sic)

A sentença julgou improcedente a pretensão punitiva estatal e absolveu o réu Marcelo Valle Silveira Mello com fulcro no art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal (não constituir o fato infração penal) (fls. 353/382).

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso de apelação à fl. 384, oferecendo suas razões às fls. 386/407. Requer a reforma da sentença para condenar Marcelo Valle Silveira Mello nos exatos termos da denúncia. Alega que tanto a materialidade quanto a autoria do delito restaram comprovadas após a instrução processual, encaixando-se a conduta do apelado perfeitamente ao tipo penal previsto no art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/1989. Assinala que não restam dúvidas de que as mensagens postadas pelo apelado no “Orkut” caracterizam a prática de preconceito contra a raça negra, uma vez que o apelado declarou, em diversas oportunidades, que considerava os negros fracassados, incapazes e burros, fato que demonstra sua absoluta intolerância com relação a esses.

Argumenta que embora o apelado seja portador de um transtorno de personalidade emocionalmente instável, tinha plena consciência do que estava fazendo e apenas diminuída sua capacidade de determinação, de maneira que, ao afirmar de forma voluntária que os negros são “fracassados”, “macacos subdesenvolvidos”, “macacos burros”, “cambada de vagabundos”, “macacos pobres”, “malandros desocupados” e ladrões de dinheiro e de vagas em universidades públicas, o fez “[…] com dolo direto de atribuir à coletividade negra adjetivos negativos e, numa linguagem mais legalista, de praticar, através dessa adjetivação, o preconceito de raça negra. […]” (fl. 395).

Assinala que a própria juíza sentenciante admitiu que o apelado referiu-se pejorativamente aos negros. No entanto, após fazer essa constatação, passou a avaliar a personalidade de Marcelo, sua conduta social e seus antecedentes para, com base nesses elementos, concluir que não houve dolo na conduta do apelado e que o processo “[…] se tornou uma manifestação de uma briga entre duas pessoas imaturas, adolescentes, e não um processo cujo escopo seria a análise da prática de crimes contra todos os negros. […]” (fl. 379). Entende o Ministério Público, contudo, que o cerne do presente processo não é a briga entre jovens acerca das cotas em universidades públicas, mas sim a prática de um preconceito racial, crime inafiançável e imprescritível sujeito a pena de reclusão, nos termos do art. 5º, inciso XLII da Constituição Federal.

Acentua que o fato de o apelado ser órfão de pai e ser portador de um distúrbio mental não é justificativa para que não seja responsabilizado criminalmente, pois, conforme consta do laudo de exame psiquiátrico, o transtorno que o acomete mantém preservada sua capacidade de entendimento e apenas diminui sua capacidade de determinação, sendo o caso, portanto, de semi-imputabilidade, cuja conseqüência jurídica deve ser a redução da pena ou a substituição da pena privativa de liberdade por medida de segurança, conforme estabelecido no art. 98 do Código Penal.

Contra-razões da Defesa de Marcelo, às fls. 434/456, pelo conhecimento e não provimento do recurso. Alega que o elemento subjetivo do tipo não restou demonstrado após a instrução processual, não sendo típica, portanto, a conduta do recorrido. Assinala que o dolo do apelado era dirigido apenas a uma crítica ao sistema de cotas por critérios de raças ou etnias.

Argumenta, também, que Marcelo, inicialmente, apresentou sua verdadeira opinião sobre o sistema de cotas, defendendo-o desde que fosse adotado o critério que leva em conta a renda dos beneficiários. Alega, ainda, que quando começou a falar do critério racial, tinha o apelado apenas animus jocandi. Os ânimos somente se acirraram após alguns internautas passarem a agredi-lo, fazendo menção ao enfarto de sua avó, à depressão de sua mãe e à morte de seu pai.

Parecer da ilustre Procuradora de Justiça, Dra. Arinda Fernandes, pelo conhecimento e provimento do apelo ministerial (fls. 460/469). Salienta que os comentários postados no “Orkut”, um site de relacionamentos da internet, são mais do que “[…] gratuitas ofensas ou piadas de mau gosto sobre as pessoas de cor negra. […]” (fl. 464), nada tendo a ver, portanto, com o sistema de cotas. Aduz que as declarações prestadas pelo apelado demonstram, “[…] sem qualquer sombra de dúvida, o dolo de praticar e incitar a discriminação contra pessoas de cor negra, ainda que sob o pretexto de se manifestar sobre o sistema de cotas raciais. […]” (fl. 465), sendo a conduta do apelado, portanto, típica.

Ressalta que sua conduta é culpável, pois o transtorno de que é portador mantém preservado seu entendimento, diminuindo apenas sua capacidade de determinação. Sustenta, assim, que o apelado é semi-imputável, fato que acarreta apenas a diminuição da pena. Argumenta que a juíza de primeira instância desviou sua atenção da conduta do apelado para sua personalidade, se atendo ao fato deste ter ficado órfão de pai muito novo, ter sido criado por uma mãe mentalmente desequilibrada e ser portador de uma anomalia. Além disso, alega que a juíza excluiu o dolo da conduta do apelado com base em seus antecedentes e sua conduta social, atributos que constituem circunstâncias judiciais que somente devem ser levadas em conta no momento do cálculo da pena-base.

É o relatório.

VOTOS

O Senhor Desembargador ROBERVAL CASEMIRO BELINATI – Relator
Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.
Possui razão o Ministério Público ao postular a condenação do réu pelo crime de racismo.
Vejamos.

CONDUTA DO APELADO

Os fatos narrados na denúncia constam dos documentos acostados às fls. 17/44, os quais tratam dos extratos de páginas da internet em que ficou registrado o delito em análise.
Marcelo Valle Silveira Mello confessou ser o autor de tais declarações tanto no Ministério Público (fls. 89/91) quanto em juízo (fls. 157/159).

Embora a MM. Juíza de primeira instância afirme na sentença recorrida que não houve crime de racismo, uma vez que ausente o dolo do apelado de praticar o tipo previsto no art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/1989, esta não é a interpretação mais adequada das manifestações proferidas por Marcelo no “Orkut”, site de relacionamento da internet.

Inicialmente, cumpre destacar que a Constituição Federal assegura a todos, em seu art. 5 º, inciso IV, o direito à livre manifestação do pensamento:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;”
Assim, Marcelo tem, constitucionalmente, o direito de se manifestar contrariamente a um sistema de cotas que utiliza como critério para o acesso a vagas em universidades públicas a raça do indivíduo. No entanto, em que pese a Constituição Federal assegurar o direito à livre manifestação do pensamento, esse direito não pode ser utilizado para acobertar a prática de conduta criminosa. Com efeito, está estabelecido no próprio art. 5º da Constituição Federal, inciso XLII, que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível. Dessa forma, caso uma manifestação seja racista, não há que se falar em liberdade de expressão, uma vez que esta conduta é criminosa, apta, portanto, a ensejar a responsabilização criminal de seu autor.
Alexandre de Moraes1 assim dispõe acerca da livre manifestação do pensamento:
1 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 141.
“[…] A manifestação do pensamento é livre e garantida em nível constitucional (…). Os abusos porventura ocorridos no exercício indevido da manifestação do pensamento são passíveis de exame e apreciação pelo Poder Judiciário com a conseqüente responsabilização civil e penal de seus autores […]”.

O Supremo Tribunal Federal, em julgamento relativo ao direito de expressão em face do anti-semitismo, manifestou-se no sentido de que o direito de expressão deve ser exercido de maneira harmônica, observados os limites impostos pela Constituição Federal, pois não se trata de direito absoluto, podendo, assim, implicar ilicitude penal:
“[…] LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. […] 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. […]” (HC 82424/RS, STF, Relator originário Ministro MOREIRA ALVES, Relator p/ Acórdão Ministro MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19/03/2004).

Verifica-se que a conduta realizada pelo apelado se amolda ao crime de racismo previsto no art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/1989, com a redação dada pela Lei nº 9.459/1997.
Conforme narrado na denúncia, no dia 14 de junho de 2005, às 03h58min, o apelado assim escreveu na página do “Orkut” de “Claudiomar Maranhão”, integrante da referida rede de relacionamentos da internet:
“EH MACACO,
INFELIZMENTE EM UNIVERSIDADE PÚBLICA NÃO DÁ CAMARADA, PRA BRANCO PASSAR PRECISA TIRAR 200, E PROS MACACOS PASSAREM EH SOH TIRAR – (menos) 200 .. UHAUHAUHHAUHA .. COMO MINHA FAMÍLIA TEM GRANA DIFERENTE DESSE MACACOS POBRES E SUJOS .. PAPAI PAGA PARTICULAR PARA MIM .. QUE POR SINAL EH MELHOR QUE A PÚBLICA …
TO POCO ME FUDENDO TAMBÉM .. ESSES PRETOS VÃO EH ESTRAGAR A UNIVERSIDADE PÚBLICA MAIS DO QUE JÁ ESTRAGARAM … NÃO SABEM NEM ESCREVER …
E TA FALANDO O OQ O MACACO … VC NÃO EH TÃO PRETO ASSIM NÃO .. E TEU PROFILE TA IGUALZINHO O MEU … O QUE DIABO VC EH .. QUER QUE UM NEGÃO COMA TEU CU NA UNIVERSIDADE EH?” (fl. 23) (sic)

Nesse mesmo dia, às 5h18min, o apelado assim se expressou em uma comunidade do “Orkut” onde se discutia a implantação de cotas para negros para ingresso em universidades públicas:
“TENHO QUE CONCORDAR QUE OS SKIN-HEADS E TODOS ESSES MONGOLÓIDES QUE DEFENDEM ESSAS TEORIAS ARIANISTAS DE SUPERIORIDADE DE RAÇA, QUE PAGAM PAU PROS EUROPEUS E CIA, E QUE BABAM OVO DE HITLER SÃO TOSCOS …. MAS EM UMA COISA EU TENHO QUE CONCORDAR .. VCS SÃO PIORES QUE ELES ..
OS CARAS PELO MENOS PAGAM PAU PROS EUROPEUS QUE SÃO UMA DAS NAÇÕES MAIS DESENVOLVIDAS DO MUNDO E ADOLF HITLER, QUE SEM DÚVIDA FOI UM GRANDE HOMEM PRA HISTÓRIA E PRO SEU PAÍS PQ QUEIRAM OU NÃO, O CARA TIROU A ALEMANHA DA MISÉRIA ..
E VCS, FICAM AÍ PAGANDO PAU DA ÁFRICA, AQUELE BANDO DE MACACOS SUBDESENVOLVIDOS, QUERENDO ATRIBUIR VALOR A ESSA „CULTURA‟ NEGRA QUE SÓ TEM MÚSICAS SEM SENTIDO E TOSCAS QUE NÃO FAZEM MAIS QUE PROMOVER ORGIAS SEXUAIS .. PAU DAQUELE PRETO DOS PALMARES LÁ .. BAH …
VOU JOGAR A REAL PRA VCS, SEUS MACACOS BURROS, EU NÃO SOU BRANCO COMO VCS TAMBÉM NÃO SÃO PRETOS … AMBOS TEMOS MISTURA DE RAÇA NESSA PORRA … AGORA VEM COM ESSE NEGÓCIO DE COTAS .. QUER DIZER QUE AGORA VCS QUEREM JUSTIFICAR A COR PRA CULPAR A GENTE DO FRACASSO DE VCS .. TOMAR NO CU …
O MAIS ENGRAÇADO DE TUDO EH QUE VCS NÃO TOLERAM OPINIÕES CONTRÁRIAS A DE VCS .. OS BRANCOS NÃO PODEM FAZER COMUNIDADES DENOMINADAS „WHITE-PRIDE‟ .. MAS VCS PODEM CRIAR O MUNDONEGRO E FICAREM RINDO NEH .. TODO MUNDO QUE ARGUMENTA CONTRA VCS … VCS PEGAM E DELETAM O TÓPICO ….
SE UM CARA CONTAR UMA PIADA DE PRETO ELE EH JULGADO POR RACISMO .. MAS SE UM PRETO CONTAR UMA PIADA DE LOIRAS .. NADA ACONTECE NÃO EH???? NEGRO ADORA FALAR DE RACISMO .. ATÉ PARECE QUE ELES NÃO SÃO RACISTAS CONTRA OS BRANCOS … BAH .. TUDO TOMAR NO CU ..
DEPOIS FICAM PERGUNTANDO PQ SE FORMA ESSES GRUPOS NO BRASIL … COM ESSES MACACOS FALANDO BOSTA ESTILO O DONO DESSA COMUNIDADE .. ATÉ ME DÁ VONTADE DE VIRAR UM SKIN-HEAD TAMBÉM .. SÓ ACHO QUE ELES TÃO PERDENDO TEMPO PQ VCS MACACOS VÃO ACABAR NA PRISÃO MESMO.” (fl. 19/20) (sic)
Ainda no dia 14 de junho de 2005, na mesma comunidade do “Orkut”, logo após ter escrito a mensagem acima, o apelado assentou, às 5h32min,:
“PRETO NO CÉU É URUBU, PRETO CORRENDO É LADRÃO, PRETO PARADO É BOSTA.
QUAL A DIFERENÇA ENTRE O PRETO E O CÂNCER
R: O CÂNCER EVOLUI!
ACABOU … AGORA VÃO LÁ PEGAR O CADERNO E MOSTRAR PRO MUNDO, SKIN-HEADS, BRANCOS E TODOS AQUELES „RACISTAS‟ QUE VCS INSISTEM EM DIZER, QUE VCS NÃO SÃO MOGOLOIDES E TEM A MESMA CAPACIDADE DE TODOS .. VÃO ESTUDAR SUA CAMBADA DE VAGABUNDO…
JÁ NÃO BASTA PRETO ROUBANDO DINHEIRO .. AGORA ELE TAMBÉM ROUBA VAGA NAS UNIVERSIDADES … O QUE MAIS VAI ROUBAR DEPOIS?” (fl. 20) (sic)
Já no dia 12 de julho de 2005, às 14h26min, escreveu na referida rede de relacionamentos da internet:
“PRA VCS QUE NÃO PASSARAM NA UNB AQUI VÃO AS INSTRUÇÕES
*DECLARE-SE NEGRO:
1 – TOME UM BANHO DE SOL
2 – APLIQUE CERA NO CABELO PARA ELE FICAR BEM DURO
3 – COLOQUE UMA CAMISETA ESCRITO „BLACK POWER‟ OU QUALQUER COISA LIGADA AO REGGAE, SE FOR MULHER COLOQUE TRANÇAS NO CABELO … QUANTO MAIS NEGRO VC PARECER MELHOR
4 – CHEGANDO NO DIA DA AVALIAÇÃO, USE GÍRIAS DA COMUNIDADE AFRO ESTILO „E AÍ MANOW‟ OU SEJA, GÍRIAS EXTRAÍDAS DAQUELES RAPS DE FAVELADOS
APÓS ISSO É QUASE CERTEZA QUE VC VAI CONSEGUIR ENTRAR NAS COTAS, POIS NESSE PAÍS DE RETARDADOS ELES AINDA NÃO ENTENDERAM QUE NÃO EXISTEM 100% NEGROS E 100% BRANCOS … E CONTINUAM ACHANDO BONITO AUMENTAR O PRECONCEITO E COLOCAR ANALFABETOS PARA DESTRUIR COM O CONCEITO DA UNIVERSIDADE…
APÓS SE DECLARAR NEGRO, VÁ PARA A PROVA E PREENCHA COMO SE FOSSE UM CARTÃO DE LOTERIA, AFINAL, QUEREM UM EXEMPLO, PARA PASSAR PARA ENGENHARIA CIVIL SENDO BRANCO: NF DE 200, SENDO NEGRO: NF DE 120 .. ENTEDERAM NÉ …

A ÚNICA COISA QUE VCS PRECISARÃO PREENCHER É A REDAÇÃO, E DO JEITO QUE A UNB ADORA ESSAS COISAS „AFRO‟, É BEM PROVÁVEL QUE O TEMA DA REDAÇÃO SEJA ALGO SOBRE NEGROS OU DEFENDENDO A PORRA DAS COTAS, OU SEJA, APENAS ESCREVA O QUE ELES QUEREM QUE VC ESCREVA, OU SEJA: „AS COTAS SÃO DEMAIS‟ OU „SIM, EU PERMITO QUE UM ANALFABETO ROUBE MINHA VAGA‟ …
APÓS ISSO VC NÃO PRECISA NEM CONFERIR O RESULTADO, SENDO NEGRO, VC É AUTOMATICAMENTE APROVADO ..” (fl. 29) (sic)

Por fim, no dia 13 de julho de 2005, às 06h27m, também no site de relacionamentos “Orkut”, o denunciado escreveu:
“VCS TÃO PUTOS PQ TOQUEI NA FERIDA DE VÊS, NA FERIDA DE COMO VCS MALANDROS DESOCUPADOS ENTRARAM NA UNB ROUBANDO A VAGA DE UMA PESSOA CAPAZ .. ISSO QUE DEVERIA SER CRIME NESSE PAÍS ..” (fl. 36) (sic)

Observa-se que o apelado se refere aos negros como “macacos”, “pobres e sujos”, “subdesenvolvidos” e “burros”. Além disso, faz uma série de comentários que inferiorizam a raça negra, bem como sua cultura, o que fica claro em declarações tais como: “e vcs, ficam aí pagando pau da áfrica, aquele bando de macacos subdesenvolvidos, querendo atribuir valor a essa „cultura‟ negra que só tem músicas sem sentido e toscas que não fazem mais que promover orgias sexuais”; “esses pretos vão eh estragar a universidade pública mais do que já estragaram (…) não sabem nem escrever”; “depois ficam perguntando pq se forma esses grupos no Brasil (…) até me dá vontade de virar um skin-head também”; “só acho que eles tão perdendo tempo pq vcs macacos vão acabar na prisão mesmo”; “qual a diferença entre o preto e o câncer (?) R: o câncer evolui!”; “vou jogar a real pra vcs, seus macacos burros”; “vão estudar sua cambada de vagabundo”; “já não basta preto roubando dinheiro (…) agora ele também rouba vaga nas universidades (…) o que mais vai roubar depois?”.

O CRIME DE RACISMO

O art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/1989, com a redação dada pela Lei nº 9.459/1997, está assim disposto:
“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
(…)
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.”

O núcleo do tipo é composto por três condutas: praticar, induzir ou incitar. De acordo com Guilherme de Souza Nucci2, praticar significa realizar, executar; induzir corresponde a dar a idéia; incitar é sinônimo de instigar, estimular.
2 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 290.
3 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Racismo. Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: RT, 2003, p. 407.

Caso uma dessas três condutas consista na discriminação ou no preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, configurado está o fato típico do crime de racismo.
Importa analisar, assim, em que consiste a discriminação e o preconceito. Discriminação, segundo Sérgio Salomão Shecaira3, é “[…] tratar de modo preferencial, geralmente com prejuízo para uma das partes. […]”.

De acordo com o Dicionário Aurélio, discriminação é “separação, apartação, segregação.”.
Preconceito, por sua vez, é, conforme a lição de Guilherme de Souza Nucci:
“[…] a opinião formada, a respeito de algo ou alguém, sem cautela, de maneira açodada, portanto, sem maiores detalhes ou dados em torno do objeto da análise, levando a julgamentos precipitados, invariavelmente injustos, provocadores de aversão a determinadas pessoas ou situações. […]”

De acordo com o Dicionário Aurélio, preconceito é “conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; idéia preconcebida”, “suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões, etc.”.

Por fim, cumpre analisar também o conceito de raça. Ainda segundo o referido dicionário, raça trata-se do “conjunto de indivíduos cujos caracteres somáticos, tais como a cor da pele, a conformação do crânio e do rosto, o tipo de cabelo, etc., são semelhantes e se transmitem por hereditariedade, embora variem de indivíduo para indivíduo.”.

O Supremo Tribunal Federal, em já comentado julgamento relativo ao direito de expressão em face do anti-semitismo, manifestou-se no sentido de que a divisão das pessoas em raças é uma realidade social, de conteúdo meramente político-social, já que “[…] com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana […]” (HC 82424/RS, STF, Relator originário Ministro MOREIRA ALVES, Relator p/ Acórdão Ministro MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19/03/2004).

A conduta do apelado amolda-se, portanto, ao tipo previsto no art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/1989.
Resta analisar o elemento subjetivo do tipo, qual seja, o dolo de praticar o preconceito de raça negra por intermédio de meio de comunicação.

De acordo com o conceito finalista, o dolo é natural. Este consiste na consciência e na vontade de realizar uma conduta descrita em um tipo penal, bastando, apenas, que o agente objetive preencher o tipo penal, não importando se este sabe ou não que faz algo ilícito.

Ao tratar os negros como “macacos”; “pobres e sujos”; “subdesenvolvidos” e “burros”, além de fazer uma série de comentários que inferiorizam a raça negra e sua cultura, inegável que o réu os considera como seres inferiores, não havendo dúvidas, portanto, de que sua conduta é racista. Com efeito, de acordo com Guilherme de Souza Nucci4, racismo é:
4 Op. cit., p. 273.
5 MIRABETE, Julio Fabbrini. Código penal interpretado. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 263.
“[…] o pensamento voltado à existência de divisão dentre seres humanos, constituindo alguns seres superiores, por qualquer pretensa virtude ou qualidade, aleatoriamente eleita, a outros, cultivando-se um objetivo segregacionista, apartando-se a sociedade em camadas e estratos, merecedores de vivência distinta. […]”

Embora as manifestações apresentadas na denúncia tenham como pano de fundo o sistema de cotas que utiliza critérios raciais para ingresso nas universidades públicas, inegável que o apelado desvirtuou a discussão acerca das cotas e passou, dolosamente, a praticar preconceito de raça negra, o que fez com que incidisse no crime previsto no art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/1989.

DA IMPUTABILIDADE PENAL

Reconhece o Ministério Público que o apelado é apenas semi-imputável, porque o transtorno que o acomete mantém preservada sua capacidade de entendimento e apenas diminui sua capacidade de determinação.
Sobre a imputabilidade penal, leciona Julio Fabbrini Mirabete5:
“[…] Admitindo-se que a culpabilidade é um juízo de reprovação e assentado que somente pode ser responsabilizado o sujeito pela prática de um fato ilícito quando poderia ter agido em conformidade com a norma penal, a imputação exige que o agente seja capaz de compreender a ilicitude de sua conduta e de agir de acordo com esse entendimento. Essa capacidade só existe quando tiver ele uma estrutura psíquica suficiente para querer e entender (…). A imputabilidade é aptidão para ser culpável, pressuposto ou elemento da culpabilidade; imputável é aquele que tem capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento. […]”

O agente, pois, somente é imputável quando for capaz de compreender a ilicitude de sua conduta e de agir de acordo com esse entendimento. O agente inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, não sofre juízo de censurabilidade ao praticar um fato típico e antijurídico, porque não possui aptidão para entender a diferença entre o certo e o errado. Sendo inimputável, de acordo com o caput do art. 26 do Código Penal, está isento de pena.

Em outros casos, a pessoa não é inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Neste caso, o agente é semi-imputável, e, de acordo com o parágrafo único do art. 26 do Código Penal, a pena a ele aplicada será reduzida de um a dois terços.
Diz o art. 26 do Código Penal:
“Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Redução de pena
Parágrafo único – A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.”

Às fls. 21/25 do processo de incidente de insanidade mental instaurado contra o apelado consta seu laudo de exame psiquiátrico. O referido laudo concluiu que o recorrido é portador de um transtorno de personalidade emocionalmente instável, do tipo impulsivo. Afirma, no entanto, que embora Marcelo seja possuidor de tal transtorno, tem ele preservada sua capacidade de entendimento e apenas diminuída sua capacidade de determinação.

Trata-se, pois, nos termos do art. 26, parágrafo único, do Código Penal, de um semi-imputável. Ou seja, capaz de entender o caráter ilícito do fato que praticou. No entanto, não era inteiramente capaz de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Acerca da semi-imputabilidade, Damásio de Jesus6 ensina:
6 JESUS, Damásio E. de. Código penal anotado. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 125.
“[…] Entre a imputabilidade e a inimputabilidade existe um estado intermédio com reflexos na culpabilidade e, por conseqüência, na responsabilidade do agente. Situam-se nessa faixa os denominados demi-fous ou demi-responsables, compreendendo os casos benignos ou fugidos de certas doenças mentais, as formas menos graves de debilidade mental, os estados incipientes, estacionários ou residuais de certas psicoses, os estados interparoxísticos dos epilépticos e histéricos, certos intervalos lúcidos ou
períodos de remissão, certos estados psíquicos decorrentes de especiais estados fisiológicos (gravidez, puerpério, climatério etc.) e as chamadas personalidades psicopáticas. Atendendo à circunstância de o agente, em face dessas causas, não possuir plena capacidade intelectiva ou volitiva, o Direito Penal atenua a sua severidade, diminuindo a pena ou somente impondo medida de segurança. […]”

Sendo o réu semi-imputável, responde pelo crime que praticou, com a pena reduzida de um a dois terços.

DA CONTINUIDADE DELITIVA

Em que pese o Ministério Público postular a condenação do réu pela conduta prevista no art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/1989 por três vezes, em concurso material, o caso se subsume ao disposto no art. 71 do Código Penal, que trata da continuidade delitiva, nos seguintes termos:
“Art. 71 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.”
Cezar Roberto Bitencourt7 leciona sobre o crime continuado:
7 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 645.
“[…] Ocorre o crime continuado quando o agente, mediante mais de uma conduta (ação ou omissão), pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, devendo os subseqüentes, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, ser havidos como continuação do primeiro. São diversas ações, cada uma em si mesma criminosa, que a lei considera, por motivos de política criminal, como um crime único. […]”

A análise dos autos deixa claro que pelas condições de tempo, lugar e maneira de execução, as diversas mensagens preconceituosas devem ser consideradas como continuação da primeira. Com efeito, todas as declarações racistas foram proferidas em um mesmo site de relacionamentos da internet, o “Orkut”, entre meados de junho e julho de 2005, não sendo adequada a punição do apelado nos termos do art. 69 do Código Penal.

DOSIMETRIA DA PENA

Passe-se, pois, à dosimetria da pena.
Na primeira fase de fixação da pena, seguindo as diretrizes dos artigos 68 e 59, ambos do Código Penal, deve o Julgador analisar as circunstâncias judiciais do réu.

A culpabilidade deve ser analisada no âmbito do juízo de reprovação do delito e do autor do fato. Contudo, nesse momento, o juízo de reprovação deve incidir nos limites do próprio tipo penal incriminador, não havendo, nos autos, elementos que justifiquem um juízo de reprovação mais rigoroso. Assim, a circunstância judicial da culpabilidade deve ser apreciada favoravelmente.

Em relação aos antecedentes, o Superior Tribunal de Justiça já pacificou o entendimento de que inquéritos policiais, ações penais em curso e sentenças condenatórias ainda não transitadas em julgado não podem servir como maus antecedentes para fins de exacerbação da pena-base, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência. Na espécie, não se verifica nenhuma condenação com trânsito em julgado por fato anterior ao ora julgado. Portanto, tal circunstância deve ser avaliada positivamente.

No que concerne à conduta social, deve-se analisar o comportamento do agente no seio da comunidade em que reside. No caso dos autos, não há elementos suficientes para aferir a conduta social. Desse modo, esta circunstância deve ser analisada favoravelmente.

No tocante à personalidade do agente, deve-se avaliar o indivíduo em seu complexo de características individuais próprias adquiridas que determinam ou influenciam o seu comportamento. No caso vertente, observa-se que o apelado é órfão de pai, não tendo esta figura presente para lhe dar orientação. Ademais, consta dos autos que o recorrido foi criado por uma mãe portadora de distúrbio psiquiátrico. Assim, esta circunstância judicial também deve ser valorada positivamente.

Quanto aos motivos do crime, devem-se perquirir os precedentes que levam à ação criminosa, não se confundindo com o dolo e a culpa. No caso dos autos, esta circunstância judicial deve ser aferida favoravelmente.

No que tange às circunstâncias do crime, o Julgador deve voltar sua apreciação aos elementos acidentais não participantes da estrutura do tipo, apesar de envolverem o delito. Nos presentes autos, as circunstâncias do delito perpetrado não diferem daquelas já previstas no modelo descritivo da conduta. Destarte, deve-se concluir por uma apreciação positiva dessa circunstância judicial.

No que se refere às conseqüências do crime, a doutrina entende como sendo o mal causado pelo crime, que transcende o resultado típico. No delito em questão, embora tenha gerado agressões físicas entre o apelado e um internauta, as conseqüências não excedem as do delito e, portanto, essa circunstância não pode sofrer juízo negativo.
Por fim, a circunstância judicial do comportamento da vítima somente apresenta relevância nos casos de a vítima incitar, facilitar ou induzir o réu a cometer o crime. Assim, tal circunstância deve ser considerada somente em favor do réu. Não é o caso, pois, de apreciar tal circunstância judicial.

Portanto, todas as circunstâncias judiciais foram analisadas favoravelmente ao réu e, por conseqüência, a pena-base deve ser fixada em 02 (dois) anos de reclusão, no mínimo legal, e 10 (dez) dias-multa, no valor mínimo.

Na segunda fase da dosagem penalógica, observa-se a presença das atenuantes previstas no art. 65, incisos I e III “d”, do Código Penal (ser o agente menor de 21 anos na data do fato e ter confessado espontaneamente a autoria do crime). No entanto, em observância ao que dispõe a Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça, deixo de reduzir a pena, uma vez que esta foi fixada no mínimo legal na primeira fase da dosimetria.

Na terceira fase, verifica-se a presença da causa de diminuição prevista no art. 26, parágrafo único do Código Penal, o qual dispõe que a pena pode ser reduzida de um a dois terços. Considerando que a pena deve ser diminuída de acordo com a intensidade do transtorno que acomete o réu e que, de acordo com o laudo de exame psiquiátrico, ele tem preservada sua capacidade de entendimento e apenas diminuída sua capacidade de determinação, fixo a redução em ½ (metade). Assim, arbitro a pena nesta fase em 01 (um) ano de reclusão e 05 (cinco) dias-multa.

Presente também a causa de aumento prevista no art. 71, caput, do Código Penal, o qual dispõe que, reconhecida a continuidade delitiva, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. Assim, fixo o aumento no mínimo legal, ou seja, em 1/6 (um sexto), o mesmo fazendo em relação à pena de multa. Dessa forma, torno a pena definitiva do apelado em 01 (um) ano e 02 (dois) meses de reclusão e 07 (sete) dias-multa, calculados à razão de 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente à época dos fatos, devidamente corrigido.

Fixo o regime inicial aberto, tendo em vista o que dispõe o art. 33, §2º, “c” e §3º, do Código Penal.
SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS
Nos termos do § 2º, segunda parte, do art. 44 do Código Penal, quando a pena privativa de liberdade aplicada for superior a 01 (um) ano, esta pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa, ou por duas restritivas de direitos, desde que atendidos os requisitos previstos nos incisos do caput do referido artigo:
“Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
II – o réu não for reincidente em crime doloso;
III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.
(…)
§ 2o Na condenação igual ou inferior a um ano, a substituição pode ser feita por multa ou por uma pena restritiva de direitos; se superior a um ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de direitos.”

O apelado preenche todos os requisitos para a concessão do benefício. Assim, substituo a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, a serem estabelecidas pelo Juízo das Execuções Penais.

Diante do exposto, dou parcial provimento ao recurso do Ministério Público para reformar a sentença e condenar Marcelo Valle Silveira Mello nas sanções do art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/1989, aplicando-lhe a pena de 01 (um) ano e 02 (dois) meses de reclusão, em regime inicial aberto, e 07 (sete) dias-multa, calculados à razão de 1/30 (um trinta avos) do salário mínimo vigente à época dos fatos. Substituo a pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direitos, a serem fixadas pelo Juízo da Vara de Execuções Penais.
É como voto.

O Senhor Desembargador SILVÂNIO BARBOSA DOS SANTOS – Revisor
Adiro, às inteiras, ao histórico da lide feito pelo eminente Relator (fls. 471-477), pois nada há para ser acrescentado ou retificado (art. 72, II, do RITJDFT).

O réu foi ABSOLVIDO da imputação contida na denúncia – prática de crime de racismo prevista no art. 20, § 2º, da Lei N. 7.716/1989, por três vezes, em concurso material (art. 69, CP), veiculada por meio eletrônico (sítio de relacionamento).
Portanto, o édito condenatório constitui medida inafastável também para que não se encoraje o retrocesso, em face dos direitos fundamentais já conquistados e amplamente consagrados pelo Estado Democrático de Direito.

Na verdade o réu utilizou-se da ação afirmativa, conhecida como sistema de cotas, como artifício para atingir a raça negra.

No pertinente à dosagem da pena, necessárias algumas adequações, ante o reconhecimento de que o réu não é plenamente capaz de autodeterminar-se sobre a ilicitude dos fatos incriminados (apenso, fls. 21-25).

Assim, a redução da pena base (02 anos de reclusão), na proporção de metade (1/2), reflete a favorabilidade de todas as circunstâncias judiciais analisadas.

Do mesmo modo, proporcional o incremento pelo reconhecimento da continuidade delitiva (art. 71, CP) em 1/6 (um sexto), restando definitivamente estabelecida em 01 (um) ano e 02 (dois) meses de reclusão, em regime inicial aberto.

Preenchendo o agente os requisitos para a substituição da pena, convola-se em direito subjetivo, obrigando o julgador a deferi-la.

ISTO POSTO, acompanho o ilustre relator, e dou provimento parcial ao recurso do MINISTÉRIO PÚBLICO para condenar o réu à pena de 01 (um) ano e 02 (dois) meses de reclusão, regime inicial aberto, e 07 (sete) dias-multa, no padrão mínimo unitário. Em razão da favorabilidade das circunstâncias judiciais, substituo a pena privativa de liberdade por 02 (duas) restritivas de direitos, conforme permissão do art. 44, do Código Penal, nas condições a serem definidas pela d. autoridade judiciária da VEP.

O Senhor Desembargador SÉRGIO ROCHA – Vogal
Com o Relator.

D E C I S Ã O

RECURSO CONHECIDO. DAR PARCIAL PROVIMENTO. UNÂNIME.
Todavia, na esteira do entendimento esposado pelo eminente relator, entendo que assiste razão em parte ao d. MINISTÉRIO PÚBLICO.

A materialidade e autoria do delito restaram devidamente provadas nos autos, esta, inclusive, confessada pelo apelado (fl. 157).

Não merecem guarida as teses defendidas pelo réu.

Em que pese conste do texto constitucional a garantia da livre expressão do pensamento (art. 5º, IV), eventuais excessos devem ser balizados com razoabilidade, haja vista que o constituinte colocou, no mesmo pé de igualdade, a vedação ao racismo (art. 5º, XLII), a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), e, ainda, instituiu, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas.

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