Estudo feito pelo DIA e ONG Justiça Global localizou 64 processos envolvendo civis acusados por desacato, desobediência e resistência
Por JULIANA DAL PIVA, do O Dia
Passava das 8h quando o mototaxista Anderson de Oliveira, de 36 anos, saiu de casa para trabalhar. A manhã do dia 23 de abril de 2014 começava como tantas outras, mas a tensão pela ocupação recente do Exército na comunidade estava no ar. Oliveira recebeu do grupo de militares, na Vila dos Pinheiros, a ordem de parar. Era para ser uma das quatro ou cinco revistas diárias que, segundo ele, enfrentava. Não foi. O mototaxista diz que estacionou um pouco à frente do local onde estava um cabo. “Não mandei você parar, filho da p…?”, gritou o soldado. O mototaxista retrucou: “Filho da p… é mãe! Me respeita que eu te respeito.” O cabo deu um soco no rosto de Oliveira e um chute na perna.
A discussão aumentou e o mototaxista foi preso pelos militares acusado de desacato. Passados 30 anos do fim da ditadura militar, Anderson de Oliveira integra um grupo de cidadãos que respondem a ações por desacato, desobediência e resistência em auditorias militares. Um levantamento feito pelo DIA e a ONG Justiça Global localizou 64 processos envolvendo civis acusados por esses crimes na Justiça Militar no Rio. Nesses tribunais as pessoas são julgadas, em sua maioria, por oficiais das Forças Armadas. A primeira instância civil é o Supremo Tribunal Federal.
A ONG identificou no arquivo digital do site do Superior Tribunal Militar 25 processos relativos ao período em que o Exército ocupou os complexos do Alemão e da Penha entre 2010 e 2012. Na Maré, apesar de a ocupação ter durado menos tempo, os números são ainda maiores. Em levantamento nas quatro auditorias militares do Rio, O DIA localizou outros 42 civis respondendo a 39 processos.
Todas as ações penais relativas à ocupação militar no Alemão e na Penha identificadas na pesquisa resultaram em condenação. Na Maré, a reportagem encontrou apenas uma condenação até o momento. O restante está em tramitação, como a ação contra Oliveira, que não foi julgada.
“Verificamos uma intensificação da atuação das Forças Armadas no cotidiano, realizando tarefas atípicas de sua função, como nas favelas. A consequência dessa atuação é o crescimento expressivo do número de civis processados e julgados por tribunais militares, mais comumente por desacato. Muitos deles são frutos da arbitrariedade e violações”, analisa Sandra Carvalho, diretora da Justiça Global.
Os crimes de resistência, desacato e desobediência estão previstos, respectivamente, nos artigos 177, 299, 300 do Código Penal Militar. Os dois primeiros têm pena de seis meses até dois anos de reclusão. Na maioria dos casos analisados, os acusados respondem por desacato. Em alguns, os réus acumulam as outras duas acusações.
No entanto, em geral, a Justiça Militar substitui a detenção por um monitoramento periódico do réu durante dois anos, chamado ‘sursis’. A condenação, porém, constará na ficha criminal do cidadão. Só depois de cinco anos do cumprimento da pena é possível pedir a reabilitação criminal, ou seja, limpar a ficha.
Na Justiça comum, o crime de desacato a servidor público não prevê prisão em flagrante. “Se um civil desacatar um presidente da República, ministro da Defesa ou comandante da Polícia Militar, responde em liberdade e pode receber o benefício de uma pena alternativa. Não vai preso”, compara a defensora pública Patrícia Blumenkrantz, que atende a maioria dos civis acusados na Justiça Militar.
Uma das dificuldades que cercam os processos, segundo Patrícia, é a falta de filmagem das abordagens, o que deixa a palavra do morador contra a dos militares e dificulta a comprovação de atos de violência. No estudo sobre o Alemão, a pesquisadora Natalia Dalmazio, da Justiça Global, identificou sete processos com denúncias do uso de spray de pimenta, balas de borracha, socos, tapas e chutes.
“Existiam testemunhos dos acusados de abusos de autoridade e violência por parte dos militares, o que na totalidade dos casos não foi levado em consideração pelo juízo na sentença”, afirma Natalia. Já na Maré, o Comando Militar do Leste informou, durante a retirada das tropas, semana passada, que fez 114 prisões em flagrante por desacato, desobediência e resistência. Apenas 39 processos foram abertos pelo Ministério Público Militar por essas acusações.
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As lágrimas da filha de 9 anos vendo o pai ser preso ainda atormentam as lembranças de Anderson de Oliveira. O mais difícil de esquecer, porém, são os quase dois dias que passou numa cela em Bangu. “Aquilo mais parece uma casa de terror”, conta. Detido, ele foi levado para a delegacia militar no Centro de Preparação de Oficiais da Reseva (CPOR) e depois para a 21ª DP (Bonsucesso), para então ser encaminhado ao sistema prisional. Antes disso, fez o exame de corpo delito, que constatou a lesão em seu rosto deixada pelo soco desferido pelo cabo. O trâmite demorou pouco mais de um dia.
Oliveira chegou no início da noite de 24 de abril no pavilhão 10 do Complexo Penitenciário de Gericinó. Na entrada, ele e os outros presos foram enfileirados e receberam ordem para tirar a roupa. Ficaram nus durante uma hora na chuva. “Com as mãos para trás, só podia olhar para o chão. Se olhasse para cima ou se o carcereiro não gostasse, apanhava”, denuncia. O mototaxista diz que, um a um, os presos eram chamados pelos nomes para informar o motivo da prisão. “O cara vai te interrogando: ‘Qual teu crime, vagabundo?’”, conta.
Quando chegou a vez de Oliveira, os agentes riram ao ouvir o relato de desacato. Ele recebeu uma camisa, uma bermuda e ficou horas sentado com as pernas cruzadas, as mãos para trás e com a cabeça abaixada, esperando o momento de ir para a cela. Teve medo até de respirar. “Tinha um carcereiro de apelido ‘Jesus’ que era o pior. Não podia olhar nem o pé dele que tomava um soco”, conta. Oliveira diz que a metade dos presos que chegaram com ele foi espancada. Ele escapou.
Após obter a liberdade provisória, o advogado Geraldo Kautzner Marques, defensor de Oliveira, decidiu entrar na Justiça Comum contra o Estado. Um vizinho filmou a abordagem e duas testemunhas também presenciaram as agressões. O 3º Juizado Especial Federal condenou a União a pagar R$ 43.440 por danos morais. “A agressão foi à cidadania como instituto do Estado Democrático de Direito, e não só aquela sofrida pelo autor. A violação jurídica foi em grau máximo, pois a instituição militar e o Estado Brasileiro não podem ser maculados por ações idênticas àquelas narradas nos autos”, escreveu o juiz Marco Critsinelis na sentença. O Exército recorreu da decisão. Anderson de Oliveira, no entanto, ainda responde ao processo de desacato.
Julgamento de civis gera polêmica
O julgamento de civis por desacato, desobediência e resistência na Justiça Militar percorre um labirinto de leis que dificulta o consenso entre especialistas.
O Superior Tribunal Militar (STM) sustenta que a competência de julgar processos de desacato de civis ocorre em função do artigo 9º do Código Penal Militar, que trata de crimes militares em tempos de paz. Para o STM, as tropas que atuaram na Maré e no Alemão estavam em “atividade privativa das Forças Armadas” devido à Garantia da Lei e da Ordem (GLO). A norma foi criada para permitir que as forças federais auxiliassem o Rio no processo de pacificação. Os territórios ficaram, durante um período, sob a responsabilidade do Exército.
As duas questões são polêmicas e provocam acalorados debates no meio jurídico. Para o advogado Geraldo Kautzner Marques, o acordo feito para o uso dos militares no Rio não configura uma GLO. “A previsão na Constituição para esse uso é de que ele seja pontual, episódico e temporário, como nas eleições. Além disso o governo estadual teria que admitir a ausência de policiamento disponível, como ocorreu na greve da polícia da Bahia”, explica.
Luiz Daniel Accioly Bastos, advogado especializado na área e militar reformado, acrescenta que a composição da própria Justiça Militar também não proporciona isenção para a defesa, tanto de civis quanto dos integrantes das Forças. Ele explica que o Conselho Permanente de Justiça — primeira instância de julgamento — é composto por cinco juízes, mas apenas um é civil concursado. Os quatro restantes são oficiais militares, e não há exigência de formação em Direito.
“Eles vêm com uma formação da academia militar. Vão verificar a questão da hierarquia e da disciplina. Não é um olhar que busca a visão de Justiça. Isso é ruim para um civil, mas também para os militares que são acusados”, afirma.
A defensora pública Patrícia Blumenkrantz argumenta ainda que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos orienta que os estados retirem o crime de desacato de suas legislações. “Ele viola a liberdade de expressão. O processo deveria ocorrer por injúria ou calúnia, por exemplo”, observa. A Argentina excluiu o desacato em 2008.
O julgamento da primeira instância nas auditorias tem recurso no STM e depois no Supremo Tribunal — a instância final e também a primeira civil a analisar os casos. Bastos explica que no STF há uma divisão de opiniões. Na Primeira Turma, uma decisão recente do ministo Luis Roberto Barroso confirmou a competência da Justiça Militar nesses casos. Na Segunda Turma, os magistrados liderados pelo ministro Celso de Mello entendem que um civil deve ser julgado somente na Justiça Comum. Mello defende, inclusive, a extinção da JM.
O Comando Militar do Leste diz que instalou uma ouvidoria na Maré e que investigou denúncias de abuso: “O foco foi atuar seletivamente contra os perturbadores da ordem pública, causando os menores transtornos à população.” O CML diz que as prisões observaram “os preceitos legais vigentes no país”.