Após seis meses da morte de Miguel Otávio, 5 anos, narrativa de defesa da ré Sari Corte Real culpabiliza a criança e infantiliza a acusada.
“Cadê aquele pessoal todo que foi pra porta da maternidade aqui? Cadê os cristãos, os deputados?”, se questionam as pessoas que participaram do ato que aconteceu em frente à 1ª Vara de Crimes Contra a Criança e Adolescente enquanto a primeira audiência de instrução para o julgamento de Sari Corte Real, ré do Caso Miguel, era realizada. O estranhamento é em relação à quantidade de gente que tentou impedir o aborto legal da criança grávida, que veio do Espírito Santo ao Recife ter seu direito garantido, sob a justificativa de proteção da vida.
Na manhã do dia 3 de dezembro, cerca de 100 pessoas deram suporte a esse ato que exige que não só esse, como outros crimes praticados contra a população negra, não passem impunes. No início de junho, por irresponsabilidade da empregadora, Mirtes Souza perdeu seu único filho, que caiu do nono andar no prédio em que ela trabalhou por quatro anos e durante a pandemia.
Um carro de som com microfone aberto acolheu a indignação de todos que estiveram no local e quiseram falar. Em discurso direto ou poemado, a presença dos pessoas que foram dar suporte à família de Mirtes, que também teve que aguardar do lado de fora do julgamento, e endossar a revolta pela acusada estar sendo protegida em um crime tão brutal como esse.
A audiência começou por volta de 9h30 e terminou às 17h30. Foram ouvidas todas as oito testemunhas de acusação, mas ainda faltam três de defesa. Enquanto estas não forem ouvidas, Sari Corte Real não vai para o interrogatório e julgamento. Em coletiva de imprensa, Rodrigo Almendra, advogado de Mirtes Souza, relatou que a narrativa que estão sendo empregada pela defesa é a de infantilização de Sari e adultização de Miguel: “ela é acusada de ser psicologicamente incapaz de prever um mal que poderia causar a uma criança ao deixá-la sozinha em um elevador. Ao que parece negar a uma criança de ser e agir como uma”.
“Só porque Miguel era negro, filho da empregada, ele não tinha direito ao cuidado. Sari não podia cuidar dele, ele não tinha o direito de ser criança, de ser protegido. Isso ficou bem explícito hoje.”
Mirtes Souza, mãe de Miguel
A Articulação Negra de Pernambuco, Coletivo Negritude do Audiovisual, o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) e a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco acompanham o caso junto a Mirtes e seus advogados.
Quem são as crianças que escolhemos proteger?
A indagação provocada por Eliel Silva, advogado assistente do caso e representante do Gajop, na coletiva de imprensa chama a atenção ao fato de que no Brasil existem legislações que protegem as crianças e adolescentes e que devem orientar nas decisões de casos como esse. O Gajop é um órgão que tem como uma das missões a proteção da criança e do adolescente. “Não é possível que o sistema de Justiça absorva essa tese de culpabilização de uma criança de 5 anos pela própria morte e que uma mulher com mais de 30 era incapaz de imaginar o que poderia ter acontecido com o menino”, comenta Mônica Oliveira, da Articulação Negra de Pernambuco e ativista de referência do movimento de mulheres negras brasileiras.
Há seis meses, os primeiros contatos com os movimentos por Direitos Humanos
Foi pela perda de seu filho que Mirtes Souza passou a ter contato com os movimentos sociais. O envolvimento da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, Articulação Negra de Pernambuco, Gajop e Coletivo Negritude de Audiovisual dão fôlego para que o caso não caia no esquecimento e continue sendo repercutido cada vez mais. “foi fundamental a parceria dos coletivos, eu só tenho a agradecer”, conta Mirtes, que reúne esses grupos e instituições com seus advogados para pensar junto as ações e estratégias.
Desde o início, afirma Mônica, “nossa tarefa sempre foi estar ao lado de Mirtes dando suporte incondicional, porque ela é uma mulher negra, como nós, que tinha acabado de perder seu único filho”. Em seis meses de diálogo, as posturas tanto de Mirtes quanto dos advogados mudaram em relação ao entendimento das dimensões do racismo que o caso envolve. “eles, hoje, conseguem entender melhor que o racismo foi determinante para morte de Miguel e está cada vez mais explícito pela forma como a defesa de Sari e alguns setores da Justiça estão tratando o caso.”
De certo modo, apontar o caso legalmente como racismo no início talvez não sensibilizasse tanto as pessoas a adotar a causa e acabou sendo estratégico para a causa, acredita Eliel. “O Brasil precisa entender que o racismo vai além de uma tipificação penal. A gente pode colocar tipificações diferentes, mas entendendo que o contexto é provocado pelo racismo estrutural.” A estratégia foi caminhar com Mirtes e prover todo apoio necessário.
A equipe agora se prepara para confrontar a narrativa da defesa da ré de adultização e culpabilização de Miguel pela sua própria queda , defender o direito à infância não só de Miguel como de tantas outras crianças negras a que também são negadas e a responsabilização de Sari pelos seus atos. “Eu vou tá no pé, cobrando”, promete Mirtes.
Após mais de duas horas de audiência, a primeira testemunha começa a ser ouvida. Mônica Oliveira, da Rede de Mulheres Negras e da Articulação Negra de Pernambuco, fala sobre as dimensões do racismo envolvidas nesse caso.
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— Favela em Pauta (@favelaempauta) December 3, 2020