Kelly se tornou professora na pandemia e luta por inclusão na sala de aula

Artigo produzido por Redação de Geledés

Vítima de um relacionamento abusivo que lhe trouxe depressão grave, a ex-auxiliar de limpeza encontrou forças para se reerguer e estudar pedagogia

Kelly Aparecida de Souza Lima, de 46 anos, tornou-se professora voluntária de 20 estudantes durante a pandemia. A maior parte dos seus alunos é de idosos e dois deles são pessoas com deficiência.  

A proposta para o trabalho foi feita pelo babalorixá Jair Tí Odé, mais conhecido como Pai Jair, uma relevante liderança negra em São Paulo. Por ter diversos projetos socioeducativos na região, Pai Jair concedeu à Kelly o espaço para as aulas e lhe deu total liberdade para conduzir o projeto.  

Do social ao religioso

“Eu dou aulas de alfabetização, mas eles são muito interessados e sempre querem aprender mais. Apesar de muitos terem dificuldades, eu também passo exercícios de interpretação de texto e ditados”, diz ela.  

O amor pela pedagogia começou quando Kelly trabalhou por cinco anos como merendeira em uma escola da região. No entanto, ela não conseguiu concluir o curso por conta de problemas de saúde. “A volta para a sala de aula foi um sonho realizado que estava guardado por muitos anos”, conta emocionada.  

A vida após um relacionamento abusivo 

Kelly se define hoje como uma mulher cheia de vida e que está realizada, mas nem sempre foi assim. Vítima de um relacionamento abusivo que durou três anos, ela acabou adquirindo diversos traumas que ainda luta para superar.  

A separação ocorreu em 2014 e, logo após, Kelly foi diagnosticada com depressão grave. “Ele não me batia, mas fazia muita violência psicológica. Ele queria meu dinheiro e eu não tinha um salário alto, porque dava aulas como dou hoje. Ele ficava batendo nas coisas dentro de casa para me deixar com medo”, lembra.  

Kelly é mãe de duas meninas: Kauany, de 18 anos, e Ana Clara, de 8 anos. Após o nascimento da segunda filha, o relacionamento piorou e o ex-marido não quis registrar a criança como sua filha. Tantas atribulações fizeram com que ela entrasse em depressão pós-parto.  

Ainda com esperanças de recuperar o seu casamento, ela deixou abandonou o ofício de professora e começou a trabalhar como auxiliar de limpeza para ter a carteira assinada. No entanto, Kelly afirma que passava tanto nervoso dentro de casa por causa das discussões sobre dinheiro que chegava a desmaiar no caminho do trabalho e ter convulsões.  

Sua mãe sempre foi a pessoa mais próxima e notou a diferença de comportamento da filha. Mas Kelly não desabafava sobre a violência que sofria dentro de casa. “Eu me fechei e não conseguia me comunicar com ninguém sobre como me sentia. Ele (ex-marido) me falava que era frescura e isso me deixava ainda pior”, lembra. 

A chegada da pandemia agravou a depressão em Kelly. “Eu só queria ficar deitada. O médico falou que eu deveria dar um ‘up’ na minha vida. Ou eu me levantava para fazer uma caminhada ou fisioterapia, ou teria que fazer cirurgia de coluna. Passei tanto tempo deitada que comecei a mancar de uma perna, porque perdi líquido da coluna”, relata.  

A violência psicológica contra a mulher é uma das formas de violência doméstica. De acordo com artigo 7º, II, da Lei Maria da Penha, a violência psicológica é “qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento (…) e que cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.  

Como denunciar e procurar ajuda

Lei Maria da Penha

O caso de Kelly passou não é isolado no Brasil. Em 2020, o número de socorro às vítimas 190 recebeu 694.131 ligações de violência doméstica, com crescimento de 16,3% em relação ao ano anterior, de acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública

É importante ressaltar que os números do anuário são subnotificados no País, porque muitas das mulheres que sofrem violência doméstica não registram queixas formalmente.  

A entrada no ensino superior e a importância da inclusão 

Após o divórcio, Kelly encontrou um novo companheiro que a apoia e a incentivou estudar pedagogia. No entanto, faltando um ano e meio para finalizar a faculdade, ela trancou o curso por falta de acessibilidade na universidade. “A própria instituição não me deu respaldo. Eu sentia muita dor na coluna e precisava de uma almofada para assistir às aulas. A minha sala também ficava no quarto andar e não tinha elevador. Comecei a ficar com DPs (dependência) por falta, porque não tinha como levar os atestados”, lembra.  

Kelly argumenta que as universidades deveriam ter um tratamento mais humanizado com os alunos, pois, segundo ela, não são apenas números. “É preciso conhecer o que se passa na vida de cada um para se adaptar à realidade do aluno”, diz.   

Agora que tem a sua própria sala de aula, o que mais a inspira é escutar as histórias dos alunos. Cada passo dado é uma grande vitória: “O meu aluno Dennis não conversava com ninguém antes das aulas. Agora, ele se comunica comigo pessoalmente e pelo Whatsapp. É uma alegria muito grande ver o crescimento pessoal de cada um”, relata.  

As aulas sãos presenciais e respeitam o distanciamento social. Para o futuro, Kelly quer continuar com o trabalho de professora e resgatar algo que ficou no passado: voltar a dançar. “Assim que eu estiver com a saúde um pouco melhor, vou voltar à dança, porque ela sempre foi a minha vida. O que vier é benção”.

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