Na estética, lacração total. Cabelos coloridos, roupas chamativas, maquiagem forte e liberdade para usar o que bem entender. No discurso, militância e combate a todo tipo de preconceito. Ocupando espaços e se autoafirmando, a geração tombamento se empodera por meio da moda, da arte e da música. “É um dos movimentos da juventude negra urbana que busca combater o racismo através da estética e da política”, explica a estudante de letras Lais Conceição, 23, que é integrante do Coletivo Luana Barbosa de mulheres lésbicas e bissexuais negras e está pesquisando sobre o tema em seu trabalho de conclusão de curso da graduação.
O visual da geração tombamento chama atenção. Sem medo de ousar, eles abusam das cores e do brilho. Os cabelos tem as mais diversas cores e formas: black power, tranças enormes, dreads imensos, carecas e o que mais eles tiverem vontade. Nas roupas a regra é a mesma: não ter regras. “A nossa estética negra jamais foi padrão. O ato de afirmar nossa identidade negra é para afrontar a estrutura que ainda nos discrimina e nos inferioriza”, declara Samira Soares, ativista do Coletivo Nacional Juventude Negra – Enegrecer .
Apesar do termo ‘geração’, não existe idade para ser tombamento, segundo Icaro Jorge, coordenador do movimento Ocupa Preto e militante do coletivo Ousar – Para Resistir e Avançar. “A cada momento histórico e social existe uma geração que é tombamento. O negro entrando na universidade é tombamento. A quantidade de intelectuais negras crescendo como pesquisadoras é tombamento”, observa.
Já que é pra tombar, elas tombam
A palavra tombamento, segundo a cientista social Lorena Lacerda, 27, se alinha ao termo empoderamento, em forma de elogio. “Surgiu no mesmo período que a cantora Karol Conka lançou a música Tombei”, explica ela, fazendo referência à rapper que é um dos maiores expoentes da geração tombamento. Os sinônimos? Fechar, lacrar, arrasar e divar. Para a baiana Paloma Barbiezinha, a definição faz todo sentido.
Aos 21 anos, a blogueira e personal stylist é apaixonada por rosa. O amor pela cor se reflete não apenas nas roupas, mas nos dreads imensos e coloridos que ela tem no cabelo. “Geração tombamento é isso, você dar a cara nas ruas e ser você, independentemente do que os outros vão falar”, afirma ela, que tem 23 mil seguidores no Instagram e mais de 16 mil visualizações no Youtube. Hoje, é cheia de autoestima, mas nem sempre foi assim.
No ensino fundamental, Paloma mudou de escola. Saiu de um colégio de bairro para um maior. Com isso, começou a perceber que os professores tratavam de forma muito diferente os alunos negros e brancos. “Não importava o quanto eu fosse boa, os elogios, os méritos, tudo era para os brancos. Eu me odiava. Com isso, comecei uma busca incessante para ficar parecida com uma garota branca”, relata.
Nessa busca, a garota chegou a ter alergia no rosto de tanto esticar o cabelo com cremes para ele parecer liso. Além disso, deixou de usar calça, passava uma base mais clara que seu tom de pele e não tomava sol para evitar que a pele ficasse mais escura. Com a autoestima baixa, veio o isolamento social e muitas horas na internet, onde começou a ver outras garotas negras, se identificar e se amar.
“Hoje, posso afirmar que me acho muito bonita. Luto para que nossos corpos negros sejam livres de qualquer conduta racista e subalternização”, garante. Para Lorena, o lugar que a geração tombamento ocupa hoje é de resistência, identidade, afirmação e autoestima para a juventude negra.
“Hoje, posso afirmar que me acho muito bonita. Luto para que nossos corpos negros sejam livres de qualquer conduta racista e subalternização”, garante. Para Lorena, o lugar que a geração tombamento ocupa hoje é de resistência, identidade, afirmação e autoestima para a juventude negra.
Tombamento no Afro Fashion Day
A diversidade da beleza negra soteropolitana chegou ao Afro Fashion Day (AFD), evento do CORREIO que celebra o mês da Consciência Negra desde 2015. Este ano, o AFD será no sábado, 18 de novembro, e acontecerá no Porto Salvador (Avenida da França, 393, Comércio). Além do desfile, haverá, das 10h às 20h, exposição, loja colaborativa, bate-papos e apresentações musicais.
Vencedora das seletivas de modelos não profissionais, Luciana Dantas, de 15 anos, se considera parte da geração tombamento e se define com muito orgulho: mulher preta, careca, loira e gorda. “Chego nos lugares e chamo atenção, outros criticam, outros falam bem. Tombar é isso”, analisa.
Luciana, moradora do bairro do Trobogy, não acreditava que chegaria ao desfile. Afinal, foram 500 pessoas inscritas nas cinco seletivas que aconteceram, de agosto a outubro, em cinco bairros de Salvador (Liberdade, Itapuã, Plataforma, Bonfim e Cajazeiras). “Tinha muita gente… Fiquei muito feliz pelo resultado. Não seguiram os padrões de antigamente. Vou gostar de representar as mulheres pretas, gordas e carecas”, contou a adolescente que participou da seletiva de Plataforma e também quer estudar química.
Blogueira e estudante de estética, Bell Rocha, 26, é modelo plus size e também vai desfilar no Afro Fashion Day. Com mais de 20 mil seguidores nas redes sociais, a carreira de Bell é recente. O sucesso, segundo ela, foi consequência do crescimento digital. “Os trabalhos foram surgindo através do Instagram”, reconhece. “É um evento único. Ele traz representatividade, empoderamento e resistência para as passarelas”, destaca.
Também modelo do Afro Fashion Day, Hiorrana Noemy tem 20 anos. Dona de uma vasta cabeleira crespa branca, a jovem confessa que ama maquiagem e sempre sai super montada. Os trabalhos, segundo ela, vieram graças à estética que assume hoje. “As agências me contratavam pelo meu estilo, minha personalidade forte chama atenção”, explica.
AfroBapho: representatividade Afro e LGBT
Promovendo debates, realizando festas e ocupando espaços, o Coletivo AfroBapho usa de todas as expressões artísticas possíveis para discutir os assuntos que geralmente são esquecidos no movimento LGBT e no movimento negro. “Ele é formado por bichas pretas, lésbicas, travestis, homens trans. Todos são partes importantes dessa construção”, afirma Alan Costa, produtor cultural e idealizador do projeto.
Fundado em novembro de 2015, o coletivo surgiu da necessidade de jovens negros LGBT pautarem os assuntos de forma conjunta. “Nós vivemos na intersecção. Precisamos discutir essas duas pautas de forma que elas se cruzem, porque, nas nossas vivências, é assim que acontece”, explica Alan.
Produzindo ensaios fotográficos e vídeos, o AfroBapho usa constantemente do audiovisual para passar suas mensagens, que vão muito além da lacração. “É uma forma de fazer política, de mostrar paras as pessoas que as nossas formas de viver e resistir também são bonitas”, conta o produtor
No Facebook do coletivo são mais de 26 mil curtidas, porém, os números não significam aceitação. “É lindo nas redes sociais as pessoas dando amei, dizendo que adoraram, mas nas ruas é uma realidade totalmente diferente”, garante. Foi assim, percebendo a necessidade de levar para o mundo real as relações criadas na rede que, em 2016, surgiu a festa Afrobapho.
Lacração noturna: Batekoo e Afrobapho
Celebrando a cultura negra, representando a diversidade e pregando total liberdade de expressão, as festas Batekoo e Afrobapho são palcos da geração tombamento. Ali, racismo, homofobia, transfobia, machismo e qualquer outra forma de preconceito não tem vez. Segundo Dih Cerqueira, produtor cultural e membro do coletivo AfroBapho, a festa surgiu como forma de materializar tudo aquilo que no projeto prega. “Era necessário criar uma festa LGBT negra. onde as pessoas se sentissem à vontade, felizes e satisfeitas ocupando aquele lugar”, observa.
Com o intuito de “oferecer um rolê inclusivo para todo mundo e dar voz a galera preta e de periferia”, a Batekoo surgiu em dezembro de 2014, em Salvador. Essa é a definição de Mauricio Sacramento, produtor da festa que se tornou uma das maiores manifestações culturais da geração tombamento. Nascida na Bahia, hoje a festa também acontece em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Estética também é política
Segundo a pesquisadora Lais Conceição, a geração tombamento recebe críticas de parte da militância negra que se incomoda com a inquietação estética. Ícaro Jorge, coordenador do movimento Ocupa Preto e militante do coletivo Ousar – Para Resistir e Avançar, acredita que ambos estão relacionados. “É um movimento estético e tudo que é estético também é político. A estética é política. A sua identidade transmite a sua concepção interna do que são as coisas”, explica. Lorena concorda.
De acordo com a cientista social, para observar a importância da estética para a população negra basta olhar para o passado. “Desde que fomos resultado de um processo de escravidão e desumanização, temos como premissa subverter tais estigmas em força”, analisa ela, que também é idealizadora da Marcha do Empoderamento Crespo.
Unindo mais de 5 mil pessoas nas ruas de Salvador, a primeira edição da Marcha aconteceu em 2015. O principal objetivo? A celebração da estética negra, o combate ao racismo e ao machismo. A segunda edição, em 2016, contou com o mesmo número de participantes. A terceira acontece ainda este mês, na tarde do dia 18. “O tema será a contrariedade ao racismo religioso”, conta Lorena.
Representatividade: os artistas que lacram
Karol Conká
Aos 31 anos, a cantora de rap inspira boa parte da geração tombamento. Com dois álbuns lançados (Batuk Freak em 2013 e Ambulante em 2017), suas letras falam de empoderamento, periferia e feminismo. Último clipe da cantora, a música Lalá, fala sobre sexo oral do ponto de vista das mulheres e critica a atitude de alguns homens: “Pouco importa pra ele se você também tá satisfeita. Esses caras ainda não aprenderam que 10 minutos é desfeita”, canta Karol. Assista ao clipe
Linn da Quebrada
“Bicha trans, preta e periférica. Nem ator, nem atriz, atroz. Performer e terrorista de gênero. Artista multimídia e bixa travesty”. É assim que Linn da Quebrada, cantora de 25 anos, se define. Transgênera assumida, Linn já foi até testemunha de Jeová. “Eu gosto mesmo é das bicha, das que são afeminada, das que mostram muita pele, rebolam, saem maquiada”, canta ela, em sua música de maior sucesso, Enviadescer. Assista ao clipe
Mc Carol
Cantora de funk de 24 anos, Carol não tem pudores e fala de sexo explicitamente em suas músicas. Seu primeiro e único álbum, Bandida, tem nove faixas. Dentre elas, Propaganda Enganosa, em que critica a rapidez da ejaculação masculina. 100% Feminista, música que compôs junto com Karol Conká e tem participação do grupo de música eletrônica, Tropkillaz, tem mais de 3 milhões de visualizações no YouTube. Assista ao clipe: