Lama e caos

a estória de Sodoma e Gomorra, em que a esposa do patriarca Lot (qual é o nome dela, deus dos céus?) se convertera em uma estátua de si mesma, petrificada ao olhar para o horror que ocorria às suas costas, sempre me faz lembrar a pequena Kim Phuc.

Enviado por Lelê Teles via Guest Post para o Portal Geledés 

Reprodução/ Twitter

a garotinha vietnamita fotografada nua e desesperada, com a  mais expressiva expressão de pânico, tendo às suas costas a imagem aterradora da destruição provocada  pelo brutal e desumano bombardeio estadunidense em 1972.

ferida por napalm, ardendo de dor, a pequena Kim Phuc só gritava “muito quente, muito quente”.

corta pra cá.

hoje, as chapadas Diamantina (BA) e dos Veadeiros (GO) ardem em chamas. animais fogem ou agonizam no calor sufocante das labaredas, as cinzas e a fumaça contaminam o ar.

há pessoas vivendo nestas paragens, é bom que se diga. quando estaremos preparados para minimizar esses horrores?

em Minas Gerais e no Espírito Santo, em nome do deus dinheiro, uma lama tóxica, uma sopa contendo quase todos os elementos da tabela periódica, escorre rio abaixo, ceifando vidas, sufocando peixes, comprometendo a lavoura, a pecuária e as vidas humanas, enfeiando tudo.

ninguém se banha duas vezes naquele rio, diria Heráclito, sem nunca ter cogitado a possibilidade de um ecocídio nas proporções deste que assola o Rio Doce.

índios estão a ser abatidos como no Velho Oeste estadunidense, madeireiros e pecuaristas contratam seus John Waynes para limparem o terreno; mandam e desmandam, matam e desmatam.

nas periferias de São Paulo, adolescentes ocupam unidades educacionais e fazem um protesto pacífico. lutam para que não fechem suas escolas, o que eles querem é estudar.

contudo, aproveitando que o Jornal Nacional só falou, ontem, da tragédia ocorrida na França, da corrida de Fórmula 1 no Brasil e do jogo entre a seleção brasileira e a seleção argentina, a polícia de Alckmin aproveitou para sentar a borracha nos adolescentes, pisando no rosto dos meninos, algemando uns e torturando outros.

choro e ranger de dentes.

é preciso que encaremos as nossas próprias tragédias, de frente, afinal o bicho não é tão feio assim para corrermos em desespero sem olhar para trás.

calar-se é dar lama ao caos.

as duas barragens que se romperam em Minas Gerais, fazem parte de um complexo de barragens, todas com a mesma falta de fiscalização e controle. todas com o mesmo grau de toxidade e todas negligentes e irresponsáveis, todas prontas para ruir.

o ecocídio tá só começando e não será televisionado.

a lama que vemos escorrer rio abaixo hoje, o fogo que consome nossas matas até cessar por si mesmo, os índios mortos, os adolescentes da periferia sendo espancados, tudo isso é fruto da nossa inação, da nossa indignação seletiva, da midiotia em uma palavra.

parece que todos se converteram em acríticos bonecos de ventríloquo.

não faz pouco tempo, todo mundo tinha um bandeira do Tibet e gritava para as câmeras “Free Tibet”, quando os estadunidenses queriam manchar a imagem da China antes da Olimpíada.

ninguém sabia apontar onde ficava o Tibet no mapa. mas era a modinha.

hoje a moda é orar.

ora, bolas. eu acredito na panspermia, mas não creio que aqueles barbudos malvados tenham se desenvolvido a partir de uma bactéria vinda na cauda de um cometa.

nesse caso eu creio mais na parábola do grão de mostarda, onde o Mestre diz que em terreno fértil a semente vinga.

esses barbudos vingadores foram treinados, alimentados e armados pelos mesmos caras que jogaram as bombas na aldeia da pequena Kim Phuc, em nome do mesmo deus que destruiu Sodoma e Gomorra.

o Estado Islâmico – que não é um estado, atentai bem – não produz um estilingue, um punhal, um canivete.

mas eles aterrorizam o mundo com mísseis terra-ar, metralhadoras sofisticadas, jipes novos e modernos e tanques blindados.

quem vende isso pra esses cabras? como tudo isso sai de uma fábrica e chega lá? como alimentam e abrigam milhares de soldados, todos armados até os dentes?

quem quer fazer essas perguntas? vamos orar.

a midiotia faz o cara acreditar que um homem-bomba, antes de sair de casa diga para a mãe, “mãe, vou ali me explodir”, e ele diz a ele, “filho, não se esqueça de levar um casaquinho e o seu passaporte sírio, não se entra no céu sem passaportes.”

palavra da salvação.

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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