Lia Zanotta Machado: O conceito de “mulher de família” é prejudicial

Pesquisadora comenta que, na base da cultura do estupro, está o sentimento de posse sobre as mulheres

por Carlos André Moreira  Do: ZH

Professora titular de Antropologia na Universidade de Brasília, Lia Zanotta Machado realizou nos anos 1990 um estudo até hoje referência em questões de violência contra a mulher: ela ouviu 82 detentos da Prisão da Papuda, no Distrito Federal, e elaborou o quadro do imaginário daquela comunidade a respeito de estupros. Chegou à conclusão de que, para eles, o estupro parecia crime quando violava as relações de família e de posse. Por telefone, ela concedeu a seguinte entrevista:

Em sua pesquisa com detentos da Papuda, a senhora verificou que o estupro era visto por eles como um crime hediondo quando imaginado contra uma mulher da família, e com indiferença quando perpetrado contra as demais. Por que esta dupla visão?
As mulheres proibidas para um homem são as da própria família. Eles devem encontrar as mulheres para ter relações fora da família. E aí você tem uma divisão cultural antiga e completamente desatualizada: as mulheres “honestas”, “de família”, ou seja, que são filhas, irmãs, mães, e as que são “de ninguém”, as que ele pode ter porque em um primeiro momento não consegue atribuir família a elas. É uma questão de posse. Uma mulher proibida, interditada, é uma mulher “de família”, porque é da família de um outro. Você não pode ter a “mulher do outro”, porque nesse imaginário o que vale é a relação entre os dois homens. Se naquela família há um homem que controla aquelas mães, irmãs, filhas, não se pode tê-las, a não ser pelo casamento. As outras, que supostamente não têm homens, podem ser de qualquer um. Essa é a base para o imaginário das vadias, das que não são interditadas. Há uma ideia recorrente de que a iniciativa é masculina, então você poderia ter qualquer mulher – menos as proibidas por serem “de família”, seja a sua, seja a de outro.

E por que esse sentido de posse permanece até hoje?
Porque foi algo construído ao longo de toda nossa história, da história colonial, da história republicana. A própria família de um estuprador, quando se trata do homem, tende a relevar o estupro, e a tentar controlar as mulheres da família, trancadas em casa, com janelas fechadas e um homem de guarda. Essa ideia de que há “mulher de família honesta” e “mulher não honesta” é prejudicial, cria uma duplicidade como a que houve com um entrevistado da minha pesquisa, que estuprou uma mulher na rua e disse ter levado um susto quando soube que a mulher havia ligado para o irmão. Ele ficou: “Como, essa mulher tem irmão?”. Porque, para ele, uma mulher que estava àquela hora na rua não tinha irmão, e portanto era vadia. Logo, ele podia tê-la.

Esse é também o sentido por trás da culpabilização da vítima?
Veja a justificativa que os homens dão, mesmo quando a moça “é de família”: “ela foi pra rua à noite, estava mal vestida”. Mesmo que seja a mais plena inverdade. A construção que os criminosos fazem, a narrativa que eles contam para os policiais, tentando se justificar, é que a mulher estava com roupas provocantes, à noite, sozinha. E essa mentalidade está tanto na cabeça dos estupradores quanto, em grande parte, na dos policiais que, quando uma mulher conta que foi estuprada, perguntam: “como você estava vestida?”, “o que você fez?”. É uma ideia acionada também por uma representação de que as mulheres que não são “de ninguém” e que “não se cuidam”, se tornam passíveis de ser objetos sexuais e tomadas à força. Elas não são interditadas. A construção da ideia da mulher vadia, que pode ser de qualquer um, prevalece, e é isso que leva até garotos a estuprarem meninas que não estão na rua, estão na mesma festa que eles.

Houve casos denunciados na Medicina da USP, o mais concorrido curso da maior universidade do Brasil. Ou da jovem estuprada em um campus de excelência como Columbia, nos EUA. É um pensamento que vai da prisão à universidade?
Sim, é impressionante, é exatamente isso. São duas coisas: tomar a posse da mulher e entender que as mulheres não dizem não, que o “não” significa “sim”. E não é só no Brasil, onde a violência já é grande. Acontece nas fraternidades americanas, em que garotos dão algo para as garotas beberem, para que fiquem com menos capacidade de impedir o ato, e então se apropriam delas, às vezes mais de um. E eles consideram essa uma relação como qualquer outra. Em 2010, eu estava na Columbia University e estive em um ato em que várias jovens, estudantes, acenderam velas, fizeram discursos denunciando estupros no campus. É um problema bem anterior ao da moça do colchão.

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