Liberdade e trabalho digno: nunca foi só sobre alforria

E se a escravidão ainda fosse legalmente autorizada? E se o cotidiano de trabalhadores/as permanecesse orientado pela possibilidade de prisão caso essas pessoas não atendessem as expectativas de quem lhes empregasse? E se os parâmetros de cidadania no Brasil fossem aqueles elaborados pela Assembleia Constituinte dois séculos atrás, logo após a Independência?

Em exercícios de escrita da história, perguntas iniciadas com “E se…” parecem ter pouca razão de ser. Afinal, tendo o passado como objeto, o que não aconteceu não deveria nem mesmo ser cogitado como material de análise. Investir nisso seria, portanto, sair do terreno dos fatos em direção ao da ficção. Mas não é bem assim. Questionamentos dessa natureza podem nos ajudar a dimensionar melhor os significados de processos, eventos e da própria agência de sujeitos históricos.

O mês de maio, por exemplo, em especial em 2023, favorece oportunidades de reflexões sobre o que não aconteceu, o que deixou de acontecer, ou, ainda, o que não poderia mais acontecer, envolvendo bastante gente.

No sábado de 13 de maio, a lei que tornou a escravidão ilegal no Brasil completa 135 anos. No último dia 3, uma quarta-feira, tiveram vez as celebrações dos duzentos anos da abertura da primeira Assembleia Constituinte brasileira, em 1823. O 1º de Maio, o Dia das Trabalhadoras e dos Trabalhadores, foi também o mote das comemorações dos 80 anos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), instituída via Decreto-Lei n. 5452, de 1943.

Vistas isoladamente, essas datas comemorativas poderiam dar ensejo tão somente a queixas sobre os desdobramentos negativos dos eventos a elas associados. As pessoas, de fato, não estão erradas quando denunciam o que chamam de “falsa abolição”, as experiências de cidadania incompleta e a precarização do trabalho entre amplos setores de nossa população.

Ao mesmo tempo, perdemos a oportunidade de ir além do lamento quando não consideramos o que estava em jogo nesses diferentes momentos da história nacional. Estamos diante quase sempre das razões que até mesmo explicam os limites das mudanças. É aí que se torna interessante aproximar o passado do presente e perguntar: será tudo a mesma coisa?

Cidadania interditada: africanos libertos não seriam brasileiros

Há duzentos anos, os integrantes da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil dedicaram-se, entre outras questões, à definição de quem seriam os cidadãos brasileiros. Embora a Constituinte tenha sido dissolvida pelo imperador D. Pedro I, o conteúdo do artigo sexto da Constituição de 1824 foi uma exata expressão dos debates do ano anterior: cidadania no Brasil era para poucos. Uma ampla e variada maioria ficaria de fora, a começar por africanos libertos.

Mulheres e homens africanos escravizados, uma vez alcançando a alforria, foram lançados à condição de apátridas, estrangeiros sem nacionalidade. Excluídos os africanos libertos da cidadania brasileira já de largada, negando-lhes os direitos civis, aos libertos nascidos por aqui caberia o acesso parcial aos direitos políticos. O limite formal era a condição de eleitores das eleições primárias, como indicado no artigo 91, do capítulo dedicado às eleições. Não fosse isso o bastante, ainda se estabelecia o critério de “renda líquida anual de duzentos mil réis por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego”, cuja comprovação poderia ser recusada.

Esse conjunto de limitações criava um ambiente hostil até mesmo à participação de homens negros nascidos livres no jogo político da cidadania. Não é demais dizer que exclusão ainda mais acentuada afetava as mulheres negras em sua totalidade. Ou seja, o primeiro texto constitucional brasileiro tinha a escravidão como fundamento, não impedia as alforrias, mas não projetava a valorização da presença negra.

A Lei Áurea pode ser mais que uma cortina de fumaça

Uma vez que liberdade formal nunca foi sinônimo de cidadania plena e que o problema remete à Independência, por que a abolição da escravidão, em 1888, tem sido considerada um dos maiores marcos da história do Brasil? Uma resposta objetiva não é difícil: porque, a partir dela, escravizar passou a ser uma ilegalidade e seus agentes puderam ser denunciados, criminalizados e até presos por isso.

Alguém pode contra-argumentar que, neste país, as leis são feitas para proteger quem tem poder. Por um lado, sim. Mas, por outro, é possível ir além de certas intenções iniciais por força das lutas de grupos oprimidos.

Atravessada por exclusões e tentativas de negação dessa dinâmica, a sociedade brasileira do século 19 foi marcada pela ampliação dos números de alforriados e de registros de gente negra nascida livre. Muitas dessas pessoas se valeram de outros dispositivos da Constituição do Império para se defenderem de arbitrariedades, com destaque para o artigo 179, que estabelecia que “a inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, [era] garantida pela Constituição do Império” por meio de 35 incisos.

Quanto a quem não era cidadão, há pouco mais de 135 anos, boa parte dos esforços abolicionistas era para provar a escravidão ilegal praticada contra africanos/as desembarcados/as no Brasil após a Lei de 1831 – que não foi só para inglês ver – e seus e suas descendentes. Foi a mudança trazida pela lei de 13 de maio que tornou possível a todo mundo reivindicar respeito à cidadania. Hoje temos como denunciar toda e qualquer prática de trabalho escravo contemporâneo. E isso tem a ver com o que fomos capazes de fazer com os instrumentos de defesa de direito de que dispomos ou mesmo demandamos.

CLT, a gente não quer só alforria

Em 1º de maio de 1943, o Decreto-Lei n. 5452 sistematizou e ampliou uma série de dispositivos legais conquistados em benefício da classe trabalhadora, como a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões, da carteira de trabalho, do salário-mínimo, etc.

A CLT é um dispositivo legal do tempo da liberdade universal no Brasil e representou uma alteração importante na forma de tratamento de muitos segmentos profissionais, embora nem todos, como foi o caso das trabalhadoras domésticas. Ela foi decisiva para que trabalhadores/as deixassem de ser basicamente sujeitos de deveres para avançarem na condição de sujeitos de direitos.

Algo que merece ser lembrado para que se entenda a importância da CLT, a primeira lei que regulou “o contrato por escrito sobre prestação de serviços feitos por brasileiro ou estrangeiro dentro ou fora do Império” brasileiro data de 18 de setembro de 1830. Nela, previa-se a autorização para que juízes de paz reconduzissem, mediante prisão, os prestadores de serviços ao lugar de trabalho previsto em contrato (art. 5º).

Essa mesma lei registrava uma cautela controversa a respeito de africanos no sétimo artigo, que dizia: “O contrato mantido pela presente Lei não poderá celebrar-se, debaixo de qualquer pretexto que seja, com os africanos bárbaros, à excepção daqueles que atualmente existem no Brasil”.

Saber disso já seria suficiente para uma defesa apaixonada da CLT e outros dispositivos de defesa de trabalhadoras e trabalhadores. Neste país, fundado em escravidão e racismo, as leis inúmeras vezes foram propostas e postas a funcionar para promover privilégios ou exclusões, mas, apenas por meio dos contrapontos feitos por grupos injustamente lesados que foi possível frustrar muitas dessas intenções condenáveis.

De tal sorte, parece ser mais interessante ir além de conjecturas como: E se houvesse um investimento maior na defesa da cidadania e trabalho digno? A construção dos “e se” como possibilidade de futuro está dada no presente. Elas constituem a força motriz das lutas de toda a vida.

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