Em “Elizabeth and Hazel – Two Women of Little Rock” (Elizabeth e Hazel – Duas Mulheres de Little Rock, inédito em português), David Margolick conta como imagem mudou para sempre a vida das duas ex-estudantes, que chegaram a ser amigas, mas se afastaram novamente. “Sei que a despeito de tudo, elas ainda se gostam e sentem falta uma da outra”, diz
no Marie Claire por Amauri Arrais
Os nomes de Elizabeth Eckford e Hazel Bryan não são reconhecíveis para a maioria, mas uma imagem das duas no dia 4 de setembro de 1957 certamente é: a primeira, uma estudante negra, óculos escuros, caminha estoicamente em meio aos colegas brancos, enquanto a segunda, logo atrás, parece gritar impropérios racistas.
A imagem histórica, capturada pelo fotógrafo Will Counts, do Arkansas Democrat, foi feita quando nove estudantes negros – entre eles a tímida Elizabeth, de 15 anos -iriam ao primeiro dia de aula no principal colégio da cidade de Little Rock, o Central High School. Selecionados pela direção para cumprir a ordem judicial de integração racial no país, eles haviam se reunido na casa de lideranças negras para irem em grupo, temendo serem hostilizados. Menos Elizabeth, que não recebeu o aviso e seguiu sozinha.
Mais de 50 anos depois do episódio, ao visitar Little Rock para uma reportagem, o jornalista David Margolick, ex-editor da Vanity Fair e colaborador do New York Times, se deparou com a foto das duas ex-alunas, já duas adultas, sorrindo uma para a outra. “Percebi que havia uma boa história ali. Pensei que era uma trajetória importante para ambas personagens”, diz o autor de “Elizabeth and Hazel – Two Women of Little Rock” (Yale Press, ainda inédito em português).
No livro, relançado recentemente, Margolick conta como a imagem, reproduzida em diversas capas de jornais e transformada em símbolo pela luta anti-segregação racial, mudou para sempre a vida das duas mulheres: traumatizada, Elizabeth sofreu com problemas emocionais por anos, enquanto Hazel passou outros tantos tentando expiar a culpa. Veja abaixo, um vídeo do autor falando sobre o livro, em inglês:
Após um pedido de desculpas de Hazel, as duas se aproximaram e chegaram a ser amigas -época da segunda foto-, mas logo voltaram a se afastar. “As diferenças entre elas –de formação, experiências de vida, atitudes e personalidades- se provaram muito grandes para serem superadas facilmente”, diz Margolick, que tentou uma reaproximação entre as duas ao concluir o livro, sem sucesso. Por email, ele respondeu a perguntas de Marie Claire.
Marie Claire – Que razões o levaram a querer contar a história por trás dessa foto icônica de 1957? O que o atraía na imagem?
David Margolick – Como qualquer estudante da história americana ou qualquer pessoa que tenha lido um livro sobre a história do país, eu convivi com essa imagem a vida inteira. Não poderia nem dizer a primeira vez que a vi; é como se sempre tivesse feito parte da minha consciência e sempre me senti atraído por ela. Quando estive em Little Rock para outra reportagem e vi uma imagem de Elizabeth e Hazel juntas, agora duas adultas, sorrindo uma para outra e aparentemente reconciliadas, percebi que havia uma boa história ali. Como foi o processo entre a primeira e a segunda foto? Pensei que era uma trajetória importante para ambas personagens.
MC – Algumas reportagens afirmam que Elizabeth Eckford não era exatamente uma estudante politizada ou engajada na causa racial à época. O que a levou a enfrentar os colegas brancos daquele jeito?
DM – É verdade que Elizabeth não era politizada ou uma ativista. Nenhum estudante negro em Little Rock ou qualquer outro lugar do sul naquela época poderia ter sido uma das duas coisas em correr grande risco e Elizabeth tinha menos ainda esse perfil porque era muito tímida. Ela era uma boa estudante e tinha muita vontade de aprender. Ela sabia que teria uma melhor educação, que pudesse oferecer mais disciplinas e abrir mais portas no futuro, numa escola para brancos.
MC – Quais foram as consequências desse ato na vida dela posteriormente?
DM – O trauma que ela viveu aquele dia em Little Rock e durante o ano naquela recém-reintegrada escola nunca a abandonaria de verdade. Ela já era uma mulher frágil e a experiência a fez mais vulnerável. Por anos, ela sofreu com problemas emocionais e basicamente se recolheu, se desligou do mundo. Mais tarde, no entanto, sua capacidade de superação a tornou mais forte.
MC – Quanto a Hazel Bryan, que traumas a imagem que a tornou um símbolo da segregação trouxeram?
DM – Hazel nunca mais conseguiu se ver livre da foto e talvez nunca consiga: a imagem se tornou maior que ela. Mas a experiência a sensibilizou para a questão racial, fez ela olhar para dentro de si e abriu sua mente e coração. Então mesmo sabendo que jamais vai se ver livre da sombra dessa foto, ela passou os últimos 50 anos tentando expiar a culpa, muitas vezes trabalhando com pessoas negras em situação vulnerável ou tentando levar uma vida mais justa.
MC – Ela tinha apenas 15 anos na época. Quando acha que ela percebeu que tinha cometido um terrível erro?
DM – Como ela própria já explicou, ela começou a perceber de verdade quando viu imagens na televisão de negros sendo feridos agredidos em protestos no sul do país. Foi então que se deu conta de ter feito parte desse racismo e prometeu fazer algo em relação a isso. Foi quando chamou Elizabeth para um pedido de desculpas.
MC – Como foi a reaproximação entre as duas?
DM – Ambas são muito inteligentes e, de certa maneira, individualistas: elas não têm muitos amigos e nunca foram muito próximas mesmo entre seus familiares. Então descobriram que gostavam da companhia uma da outra e, para surpressa de todos, se tornaram amigas genuínas.
MC – Por que elas romperam novamente depois?
DM – As diferenças entre elas –de formação, experiências de vida, atitudes e personalidades- se provaram muito grandes para serem superadas facilmente. Elizabeth, que é muito rigorosa e exigente consigo mesma e com os outros, começou a achar que Hazel não era imparcial o suficiente a respeito do que havia feito e do nível que sua família era responsável pelo que aconteceu. Hazel, por outro lado, se ressentia da desconfiança de Elizabeth. Ela disse ter se cansado de Elizabeth sempre estar testando sua sinceridade. Então pararam de se falar há alguns anos.
MC – Durante sua pesquisa, houve alguma tentativa de encontro entre as duas?
DM – Eu não queria interferir na história sobre a qual estava escrevendo, então, até o final da minha pesquisa, nunca tentei convidar as duas para um encontro. Só quando o fotógrafo do projeto quis que as duas posassem juntas, nós falamos sobre o assunto. Elizabeth concordou em ser fotografada novamente, mas Hazel recusou e a novo foto das duas nunca foi feita. Eu espero muito que um dia, talvez quando ninguém estiver por perto, elas se reaproximem novamente. Sei que a despeito de tudo ainda se gostam e sentem falta uma da outra.
MC – Você diz, no vídeo de divulgação do livro, que a foto permanece como uma metáfora da luta para superar o racismo nos EUA. Quais são os desafios de hoje em relação à época?
DM – As coisas realmente estão melhores hoje do que em 1957, quando a segregação era lei. Flagrantes de discriminação em instituições de ensino, lugares públicos, no serviço militar etc hoje são crimes. Mas claro que o preconceito racial ainda é um problema enorme nos Estados Unidos, em parte porque hoje é muito mais sutil e difícil de detectar.
MC – Aqui no Brasil, a foto foi lembrada quando da chegada dos primeiros médicos cubanos para um participar de um programa do governo federal, que foi alvo de protestos de médicos brasileiros. A imagem de uma médica branca gritando “Escravo!” para um colega cubano foi comparada com a de Elizabeth e Hazel. Você vê diferenças entre o racismo ainda presente nos EUA e no Brasil?
DM – Sei que as relações raciais tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, embora tenham raízes comuns no comércio de escravos europeu, evoluíram de formas muito diferentes. No entanto, por mais que já tenha estado no Brasil, não acho que consiga comparar o tipo de racismo dos dois países. É uma situação difícil de compreender mesmo aqui.