Lockdown no Pará tem serviço doméstico como ‘essencial’, contrariando governo federal e MPT

FONTEPor Gabriela Azevedo, Gil Sóter e Thaís Rezende, do G1
Bigstock
Decreto de lockdown publicado pelo governado Helder Barbalho prevê serviço doméstico como indispensável — Foto: Reprodução

O decreto de lockdown no Pará, publicado na terça-feira (5), possui um inciso que causou polêmica: o serviço doméstico é citado entre os 59 setores essenciais que têm permissão para continuar operando durante a restrição. Nas redes sociais, o prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho, reforçou que o decreto municipal de lockdown também indicará que as domésticas deverão continuar trabalhando na pandemia. A decisão, só adotada no Pará, vai na contramão do que indicam o decreto federal de serviço essencial e as recomendações do Ministério Público do Trabalho (MPT).

Prefeito de Belém publica nas redes sociais que decreto municipal, seguindo o decreto estadual, também inclui doméstica como serviço essencial na pandemia — Foto: Reprodução/Twitter

No Pará, de acordo com dados do Dieese-PA, são cerca de 200 mil trabalhadores domésticos que terão que continuar indo às ruas em meio à proliferação do novo coronavírus. O Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), entidade que atua há 40 anos contra o racismo e em prol de políticas públicas para minorias, informou, em entrevista ao G1 nesta quarta-feira (6), que vai acionar a Justiça para que o inciso seja retirado do decreto.

Nas redes sociais, a cantora paraense Gaby Amarantos criticou decreto. “O prefeito Zenaldo, de Belém, incluiu as trabalhadoras domésticas nos serviços essenciais, tirando delas o direito de cuidar de seus filhos e de suas mães, e isso é gravíssimo. Mulheres pretas e periféricas são quem carregam esse país nos braços. CHEGA, liberem as domésticas!”, publicou a artista.

Cantora paraense Gaby Amarantos criticou a manutenção do trabalho doméstico durante a pandemia — Foto: Reprodução/Twitter

O lockdown foi determinado em dez cidades do Pará após o estado registrar índices de morte por Covid-19 muito acima da média nacional, e enfrentar crise na saúde e colapso do sistema funerário, com menos da metade da população respeitando a orientação de isolamento social. A medida endurece, com fiscalização e punição, a restrição do ir e vir em locais públicos como forma de reduzir a contaminação por Covid-19.

Domésticas na pandemia: só no Pará

O serviço doméstico como algo essencial na pandemia é exclusividade do Pará. No Maranhão, primeiro estado a decretar lockdown no Brasil, o trabalho doméstico não é citado como indispensável. O decreto federal, que estabeleceu quais os serviços que não podem parar na pandemia, também não incluiu os trabalhadores domésticos.

O inciso do decreto foi recebido com críticas. Para Nilma Bentes, ativista negra e uma das fundadoras do Cedenpa, o inciso revela a escolha de tornar ainda mais vulnerável quem já é o alvo principal da doença: pessoas negras e periféricas são as que mais morrem de Covid-19 no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde.

“Embora a doença atinja a todos, não estamos no mesmo barco. O mar é revolto para todos, mas na nossa rabeta não tem colete nem boia. A pandemia atinge fundamentalmente a população de baixa renda”, destaca Bentes.

Quando o assunto é serviço doméstico, quem fica na linha de frente de risco são elas. No Brasil, 92% do emprego doméstico é exercido por mulheres, e 68% delas são negras. “Elas trabalham em três situações: umas são diaristas, ou mensalistas, e outras atuam sem qualquer amparo legal. Aqui no Pará há ainda aquele ranço escravagista de trazer garotas muito jovens do interior para serem domésticas na cidade grande”, diz Nilma, uma das idealizadoras da Marcha das Mulheres Negras.

Danila Cal, doutora em Comunicação e coordenadora do grupo de pesquisa Comunicação, Política e Amazônia, que pesquisa o trabalho doméstico no Pará, a decisão estadual revela uma cultura da servidão, herança dos mais de 300 anos de escravidão no Brasil.

“A nossa sociedade está acostumada a ser servida, e o trabalho doméstico é considerado um trabalho muito exaustivo, e considerado muitas vezes de segunda categoria por algumas pessoas. As pessoas não querem realizar o trabalho doméstico na sua própria casa, manter limpa, cuidar das coisas que não são consideradas por elas como essenciais”, diz Cal.

O Cedenpa informou que quer a retirada do inciso que mantém os serviços domésticos no lockdown. A entidade anunciou que vai procurar órgãos estaduais dos Direitos Humanos. Em caso de resistência para a remoção, o Cedenpa acionará a Justiça.

“O inciso tem que ser retirado. Se não houver negociação, que é a via mais rápida para resolver o problema, caso haja resistência para a remoção, vamos sim levar o caso até a Justiça”, diz Nilma Bentes.

Falta critério

As atividades essenciais são aquelas indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, ou seja, as que se não forem realizadas colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.

Em nota, a Procuradoria-Geral do Pará (PGE) informou que a lista de serviços essenciais disponibilizada pelo governo federal não é de observância obrigatória. A PGE disse ainda que os serviços domésticos foram incluídos como atividades essenciais permitidas, como forma de garantir assistência a idosos, pessoas com deficiência ou crianças, especialmente nos casos em que os responsáveis trabalhem em atividades essenciais. Essas especificidades não foram detalhadas no decreto.

Segundo nota publicada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) para conter o coronavírus entre trabalhadores domésticos, os profissionais devem ser dispensados com remuneração assegurada, no período em que vigorarem as medidas de contenção da pandemia. A exceção valeria para casos em que a prestação dos serviços for absolutamente indispensável como o cuidado a idosos que residem sozinhos e a pessoas que necessitem de acompanhamento permanente.

A recomendação do MPT foi publicada após, no começo da pandemia no país, uma empregada doméstica de 63 anos morrer diagnosticada com o coronavírus em um hospital de Miguel Pereira, no sul do Rio de Janeiro. Ela teve contato direto com a patroa, que havia chegado da Itália diagnosticada com o coronavírus.

Para a prof. Danila Cal, o decreto precisaria detalhar quais os serviços essenciais dentro dessa atividade. “Pode haver essa necessidade realmente, no caso de pessoas que trabalham em serviços essenciais, por exemplo os médicos que estão trabalhando e outros profissionais que precisam e talvez não tenham com quem deixar seus filhos. Mas, nesse caso, eu creio que o decreto tinha que tratar disso como uma exceção, uma exceção dentro da exceção do que pode, mas não colocar de forma geral que os trabalhos de limpeza estão permitidos. Esse geral é excludente e ele coloca em risco uma parcela muito grande da população”, defende.

Nilma Bentes destaca que é falta de bom senso manter o serviço doméstico na pandemia, visto que representa riscos para ambas as famílias envolvidas: a do empregador e a do trabalhador.

“Os próprios empregadores deveriam liberar as domésticas, porque eles sabem que as trabalhadoras vivem em condições precárias e manter esse trabalho representa riscos para as domésticas e para o empregador”, defende Nilma.

Para STF, Covid-19 é acidente de trabalho

O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por maioria, na última quarta-feira (29), suspender dois trechos da medida provisória 927, que flexibiliza normas trabalhistas durante a pandemia do coronavírus. Entre os trechos anulados está a possibilidade de que casos de Covid-19 não fossem doenças ocupacionais. O que significa que a infecção pelo novo coronavírus passa a ser considerada acidente de trabalho. que O restante da MP fica mantido, pelo menos até a análise do Congresso Nacional.

Acordos regem relação

Antes da inclusão dessa atividade como essencial, o que estava regendo a relação entre patrões e empregadas eram acordos. Um empregada doméstica mensalista, de 52 anos, que preferiu não se identificar, relatou ao G1 que está morando na casa dos patrões desde o fim do mês de março. No início das medidas restritivas, ela foi afastada por 10 dias com remuneração. Ao fim desse prazo, os chefes propuseram que ela ficasse hospedada na casa dos deles durante esse período de isolamento social e mantivesse suas atividades.

“Eu aceitei. Moro só eu, minha irmã e meu filho, que é adolescente. Perguntei sobre ele e pude trazer meu filho. Ele tá aqui comigo. Minha irmã foi cuidar dos nossos pais que são mais velhos e iam precisar nesse período. Aqui a gente não está saindo pra lugar nenhum. Tem outras funcionárias que estão aqui também e aceitaram o acordo”, relata.

Outra empregada doméstica mensalista de 56 anos, que também terá a identidade preservada, teve suas férias adiantadas como primeira medida. Ela mora com o filho e o marido que é feirante no Ver-o-Peso e não está trabalhando. A situação financeira da família sofreu impactos severos com as medidas de isolamento social.

“Eu até me ofereci para continuar indo. Mas minha patroa tem a mãe em casa e disse que não poderíamos arriscar nem a saúde delas e nem a minha. Primeiro ela adiantou minhas férias. Como venceu e a situação ainda está difícil, eu continuo afastada. Ela está me pagando normalmente, disse que ia continuar me pagando, o que me ajudou. Aproveitei e estou fazendo máscaras para vender. Mas agora até isso parou.

Mas foi melhor assim, me senti mais segura sem ter que ficar usando ônibus por aí, podendo ficar doente”, conta.

A psicóloga Adriana Nascimento recebia uma diarista duas vezes por semana, mas desde março com as primeiras restrições, a liberou do trabalho. Na casa, outro acordo. “Eu disse que ela não precisaria mais vir porque vinha de ônibus, morava longe e ia se arriscar. Ela ficou preocupada com o dinheiro. Eu disse que não teria condições de pagar as duas diárias da semana, mas uma por semana e ia continuar depositando. Perguntei se ficava bom assim e ela concordou.”

-+=
Sair da versão mobile