Luana Tolentino – professora e historiadora

Mulheres ousaram escrever, editar e publicar jornais exigindo sua emancipação desde o século XIX, mas as mulheres negras estiveram sub-representada neste processo

Do Jornal Mulier

Mulier – Luana, por favor, fale um pouco sobre você, suas origens e formação.

Luana – Entre 13 e 18 anos de idade, fui babá, faxineira e empregada doméstica. Sou historiadora por formação. O desejo de cursar a faculdade de História veio após encontrar “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Hollanda, na biblioteca da escola em que estudei. Embora fosse uma escola pública, a biblioteca era excelente. Ao ler a introdução do livro, pensei: é isso que eu quero ser! Quanto a ser professora, não considero uma escolha.  Atribuo ao destino: aos 10 anos alfabetizei uma criança. Tentei fugir, trapacear, sem sucesso. Hoje leciono para turmas do ensino médio e fundamental. Sou apaixonada pelo o que faço, apesar de todos os problemas e desafios da carreira docente. E também escrevo. Isso sim é algo que eu sempre quis fazer na vida. Aqui em Minas Gerais, não é comum usar esse adjetivo, mas sou suburbana e com muito orgulho! Tenho um irmão e uma irmã. Sou a filha caçula do senhor Nicolau e da Dona Nelita. Caçula e gêmea univitelina.

Mulier – Você pesquisa na Universidade Federal de Minas Gerais publicações femininas editadas no Brasil. Seu estudo abrange qual período?

Luana – Esta pesquisa é coordenada pela professora Constância Lima Duarte e está sendo financiada pelo CNPq. Dentre seus objetivos, pretende resgatar a história da imprensa feminina e feminista no Brasil desde o século XIX até a contemporaneidade. O ponto de partida é o ano de 1827, quando foi lançado, no Rio de Janeiro, o jornal “Espelho Diamantino”, considerado a primeira publicação destinada ao público feminino no país.

Mulier – Quais resultados já conseguiu obter sobre o assunto?

Luana – É uma pesquisa surpreendente. Já no século XIX, mulheres de todo Brasil ousaram escrever, editar, publicar jornais com textos que exigiam a emancipação feminina, o fim da “escravidão doméstica”, o direito de frequentar escolas. Josephina Álvares de Azevedo, por exemplo, defendia o divórcio e o voto feminino no “Jornal das Famílias”, publicado na década de 1880. É importante dizer que algumas iniciativas tiveram o apoio e a solidariedade masculina. Por outro lado, considero a imprensa feminina também um tanto opressora, ao impor regras, normas e padrões a serem seguidos pelas mulheres. Além do resgate da imprensa feminina e feminista, vejo neste trabalho a possibilidade de se reescrever a história do movimento feminista no país. No início da pesquisa, havia cerca de 100 títulos de periódicos e hoje eles já ultrapassaram 450 títulos. Foi no contexto dessa pesquisa que encontrei o “Mulherio” e descobri que a Lélia Gonzalez fez parte do corpo editorial do jornal.

Mulier – Como você vê a evolução da produção jornalística feminina após a década de 1930, com a conquista do voto feminino no país?

Luana – Curiosamente, esse é um período de arrefecimento da imprensa feminina. Localizamos poucos títulos nessa época. Posteriormente, a partir dos anos de 1950, temos o início da modernização desse tipo de imprensa. A fundação da Editora Abril em 1950 e dois anos mais tarde o lançamento da revista “Capricho” marcam o nascimento da grande imprensa feminina no Brasil.

Mulier – Agora você está desenvolvendo uma pesquisa sobre o jornal “Mulherio”. Poderia nos contar sobre esta publicação?

Luana – O “Mulherio” foi um dos jornais de maior destaque na história da imprensa feminista no Brasil. Seguindo uma tendência da época, o “Mulherio” surgiu no seio de uma organização não governamental, a Fundação Carlos Chagas, em 1981. O conselho editorial do jornal era composto por intelectuais proeminentes da época, como Adélia Borges, Fúlvia Rosemberg, Maria Rita Kehl, Ruth Cardoso, Heleieth Saffioti, Eva Blay, Elizabeth Lobo, Maria Carneiro da Cunha e ela, Lélia Gonzalez (fico emocionada ao citá-la…). Em pauta, temas considerados tabus para a época: o uso de métodos contraceptivos, planejamento familiar e o aborto. Tratava ainda da inserção da mulher no mercado de trabalho, denunciava a violência contra mulher e debatia questões políticas. Foram 36 edições, inserindo o “Mulherio” no rol de publicações com maior longevidade da imprensa feminista. “Mulherio” chegou ao fim em 1988.

Mulier – E quem foi Lélia González, tema de sua atual pesquisa?

Luana – Antes, preciso dizer que me sinto muito rica e grata em poder falar de Lélia Gonzalez. Isso me deixa muito emocionada. Considero a Lélia uma das mulheres mais importantes do século XX. Foram 59 anos de uma vida muito intensa. Nascida em Belo Horizonte (MG), Lélia teve uma trajetória muito semelhante a da maioria das mulheres negras do Brasil: antes de tornar-se antropóloga e professora universitária, foi empregada doméstica durante a infância e parte da adolescência. Em 1978, participou da fundação do Movimento Negro Unificado. No ano seguinte, ajudou a criar o Bloco Afro Olodum. Também foi tema de estudos acadêmicos e, em 2010, foi lançada sua biografia. Suas contribuições para o movimento de mulheres e, mais precisamente, para o feminismo negro, são inenarráveis.

Mulier – O que destacaria de mais interessante na produção de Lélia no “Mulherio”? 

Luana – Num primeiro momento, interessava-me saber como era a relação de Lélia Gonzalez com as demais companheiras do “Mulherio”. Lélia era a única negra do grupo. Historicamente, a relação entre mulheres negras e brancas no movimento feminista é muito tensa e conflituosa devido ao pouco espaço que as especificidades das negras têm no movimento de mulheres. O surgimento de grupos e entidades fundados por militantes negras nos anos de 1980 é uma prova disso. Em seguida, ao ler cada um dos cinco artigos-provocações (é assim que eu denomino a produção de Lélia no “Mulherio”), descobri uma mulher autêntica, corajosa, à frente do seu tempo. Em 1983 Lélia já falava da maneira preconceituosa como os negros eram representados nos livros didáticos e nos anais da História. Vinte anos depois, em 2003, foi promulgada a Lei 10.639/03, tornando obrigatório o ensino de História e culturas africanas e afro-brasileiras no currículo escolar. Em outro texto, ela denuncia o tratamento desumano dispensado às empregadas domésticas que, segundo ela, eram tratadas como “escravas de eito” pelas patroas. Há pouco menos de um mês, ou seja, 30 anos depois, finalmente foi aprovada a PEC 66, regulamentando o trabalho doméstico no país.

Mulier – A presença de mulheres negras escrevendo em jornais femininos é comum ao longo da história dessas publicações? Isso tem relação com as temáticas abordadas?

Luana – De maneira alguma. Há uma total exclusão, uma sub-representação. Nesta pesquisa em que sou bolsista, como eu disse anteriormente, já registramos mais de 450 jornais. Destes, apenas três (3!) são destinados às mulheres negras. Um deles, o “Nzinga”, fundado em 1986, foi uma iniciativa da própria Lélia. Isso nos dá a impressão de que vivemos num país majoritariamente branco, uma inverdade. Raras são as imagens de mulheres negras na imprensa feminina, seja em revistas do século XIX ou contemporâneas. Recentemente recebi um email da revista “Claúdia” solicitando minha “ajuda” na escolha da mulher que deveria ocupar a capa da edição seguinte. Dentre as 30 opções, não existia nenhuma mulher negra. É preciso mudar isso urgentemente.

Mulier – Como tem visto a luta e a conquista de direitos das mulheres negras no Brasil articuladas com o movimento de mulheres negras?

Luana – Nossa luta é diária, interminável. Nós, mulheres negras, somos triplamente discriminadas: pela cor, sexo e classe social, uma vez que as afrodescendentes em sua maioria ainda ocupam os extratos sociais mais baixos da sociedade. A reversão desse quadro de exclusão demanda, além de políticas públicas, uma mudança de mentalidade no Brasil, algo extremamente difícil. Mas isso não nos intimida. Acredito que vivemos um tempo de conquistas. O aumento do número de mulheres negras matriculadas em instituições de ensino superior e a nomeação da professora Nilma Lino Gomes para reitoria da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB) são parte desse novo tempo. A aprovação da PEC das Domésticas também. Sem falar das vitórias e conquistas cotidianas de mulheres negras anônimas que não temos conhecimento. Outra coisa que me deixa bastante animada hoje: a nossa batalha tem maior visibilidade, ainda que muitos queiram nos relegar a condição de seres invisíveis. Assim como eu, Lélia deve estar feliz e esperançosa.

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