Lugar de fala & A Fala do lugar

Em espanhol, quando queremos compartilhar a nossa opinião sobre o que faríamos se estivéssemos vivenciando a mesma situação que outra pessoa, nós dizemos: Yo que tú. Em inglês, nós calçaríamos os sapatos do sujeito para mostrar empatia e utilizaríamos a seguinte expressão: In your shoes, I would. Estar no lugar de alguém e/ou na pele de alguém não passam de expressões idiomáticas. Por mais que nos esforcemos para compreender uma situação, até mesmo aquelas pelas quais já passamos anteriormente, não podemos alcançar o completo sentimento que o outro pode ter acerca daquela situação, pois até mesmo os acontecimentos similares têm impactos diferentes para as pessoas.

Uma situação que se repete para alguém pode ter resultados distintos a cada vez, considerando que sempre podemos aprender algo a partir do que vivenciamos. Em 2020, ouvi repetidas vezes a mesma expressão “lugar de fala”. Em contextos, quase sempre, relacionados às questões ou discussões raciais, várias pessoas usaram essa expressão para demarcar a legitimidade discursiva ou das atitudes diante das experiências que envolviam ou permeavam essas tensões.

Mas afinal de contas, o que é lugar de fala? Qual lugar é esse? Qual fala é essa? Quem é essa pessoa localizada nesse espaço e que performa essa fala? Sobre o que se fala, afinal? A primeira resposta pode ser encontrada nos livros de história que narram a trajetória de pessoas que foram sequestradas, traficadas e vendidas para serem escravizadas no exterior. Sim, eu estou te informando que esse “lugar” foi construído a partir do rapto de mais 12,5 milhões de cidadãos africanos que foram arrancados de seu continente e trazidos para as Américas, por mais de 300 anos. Desse total, desembarcaram no Brasil um número estimado de 6 milhões de pessoas. Os primeiros deles chegaram por volta da década de 1550 e, oficialmente, deixaram de vir depois que a Lei Eusébio de Queirós ou Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850, foi promulgada durante o Segundo Reinado de Dom Pedro II.

A condição de vida dessas pessoas negras era deplorável. Além do trabalho forçado, elas não eram alimentadas adequadamente, eram submetidas às punições físicas (chibatadas, queimaduras, amputações etc.,), abusadas sexualmente, tinham a liberdade cerceada e viviam em senzalas, porões ou em quaisquer cantos em que seus algozes achassem conveniente. Logicamente, essas pessoas não eram consideradas dignas de terem os mesmos direitos que as pessoas brancas.

Assim, não eram enxergadas como seres humanos. Houve filósofos, cientistas, juristas que defenderam a ideologia que dizia que os negros eram inferiores aos brancos biologicamente. Inclusive, padres e outras autoridades eclesiásticas pregaram que a escravidão era a vontade de Deus para redimir e salvar os negros do ócio, da preguiça e dos maus pensamentos. Sim, a Igreja foi o braço direito do sistema escravocrata. Logo, o lugar reservado para quaisquer negros ou negras era às margens da sociedade. Destituídos de sua humanidade, ignorados pela sociedade, racializados para serem dominados.

Para os negros não havia espaço. O fim do período escravagista, ao redor do mundo, não significou inclusão, reparação ou indenização pela exploração e muito menos uma incorporação ou “ressocialização” na sociedade – uso essas aspas porque nunca houve uma socialização durante a escravidão. No Brasil, quando a mão de obra negra explorada passou a ser proibida após 13 de maio de 1888, vários fazendeiros contrataram trabalhadores estrangeiros oriundos da Itália, para trabalharem nas atividades agrícolas e receberem pelo serviço que nós negros vínhamos performando por mais de três séculos.

A essa altura, podemos perceber que o “lugar” do qual falamos se chama “exclusão social”. Nesse espaço, vários silenciamentos acontecem até hoje e, por isso, precisam ser combatidos. A cultura, as crenças religiosas, as expressões estéticas subjetivas: a arte e a beleza; a língua e outros elementos constituintes do ser humano são discriminados e demonizados. Nossa resposta como pessoas negras, ou seja, a nossa luta e agenda surgem a partir da constatação de que esse lugar construído para nós pela branquitude brasileira, que se valeu e se beneficiou dessa dominação, é pequeno demais para nós e, portanto, não nos comporta. Quando nós negros, grupo, socio-historicamente excluído e explorado, delineamos outras identidades diferentes daquelas limitadoras impostas sobre nós por nossos opressores, que nos consideravam inferiores, inumanos ou incapazes, essa nova elaboração acerca do que somos se torna o nosso ato de “fala”.

Sabendo nomear os vários lugares ou esferas sociais reivindicados desde sempre pela branquitude como seus por direito, e que a nós são negados e, por isso, ainda não os ocupamos como merecemos, o coro de nossas vozes fica mais potente e pungente. Então, o nosso “lugar de fala” é essa consciência cultural e histórica sobre as desigualdades que nos cercam e atravessam as nossas vivências, lutas, resistência, discriminações, opressões, silenciamentos, exclusão, em suma, o racismo que nós negros sentimos na pele. O sujeito localizado nesse lugar e que traz essa fala não discursa solo, pois a voz negra que se ergue se une à letra de música composta e gravada, ao livro publicado, ao quadro pintado, à ponte erguida, à cirurgia performada, ao diploma erguido para o alto, à previsão do tempo informada no Jornal Nacional , ao seriado, ao programa de tv, ao filme e à novela protagonizada por uma pessoa negra, à coluna deste jornal.

Tudo isso representa todas as vozes plurais negras que ecoam e se unem invisivelmente à luta antirracista que busca a igualdade de oportunidades, a representação nos espaços públicos de poder e a justiça social. A fala do lugar, para mim, é mais importante que o lugar de onde se fala, pois é ela que tem bradado para ser ouvida. Essa fala tem um barulho específico quando sai da boca de quem vem sendo oprimido, mas isso não exclui o dever das pessoas não negras, e as pessoas brancas, de falarem e buscarem esses mesmos objetivos. Em uma sociedade racista, não ser racista não é mérito algum, pois é a mais pura obrigação de todos, mas isso não basta. É preciso ser antirracista, também.

*Doutor em Estudos Linguísticos – Pesquisador e Professor efetivo do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) instagram: @nazareorientadora
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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