Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974): o menino da Ilhota

“Lupi, velho guerrilheiro da caixinha de fósforos”

     (Jornalista Paulo Santana)

 

Em 2014, a música brasileira comemorou o centenário de nascimento de um grande ícone: Lupicínio Rodrigues que nasceu na Ilhota, em Porto Alegre, no dia chuvoso de 16 de setembro de 1914. Lupi, como era chamado, fugia de casa, ainda criança, para participar das rodas de samba da antiga Ilhota. Este local, em que nasceu “O Rei da Dor de Cotovelo”, foi um dos espaços mais importantes de resistência cultural do negro na capital gaúcha. Durante sua vida, Lupi dissecou em suas canções o amor, com suas alegrias e desencantos, como um legítimo cirurgião da alma.

por Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite* via Guest Post para o Portal Geledés

Aos 14 anos, compôs sua primeira música, Carnaval, para o cordão ”Os Prediletos”. Ele foi o quarto filho e o primeiro varão do casal Francisco e Abigail dentre 21 irmãos. Embora não se adaptando a rotina escolar, completou o curso ginasial e aprendeu o ofício de mecânico. Pertencendo a uma família numerosa, desde cedo, colaborou nas despesas familiares, trabalhando, como baleiro, na frente do Cinema Garibaldi, entregador de pacotes na Livraria do Globo, empurrador de roda de bonde na Cia. Carris e fazedor de parafusos na Fábrica de Cipriano Micheletto. A sua paixão por música e pela vida boêmia fez com que seu pai o alistasse, aos 15 anos, no Exército, acreditando que estaria dando outro rumo à vida do filho.

Em 1933, foi transferido para Santa Maria, sendo promovido a cabo. Nesta cidade, conheceu a jovem Iná, seu primeiro e grande amor, para quem compôs “Felicidade”, “Zé Ponte” e “Nervos de aço”. Após cinco anos, o noivado foi desfeito devido à interferência da família da noiva, que não aprovava o seu comportamento boêmio. Ao encontrar Ináh, enamorada por outro, sentiu profunda mágoa, gerando, a partir deste rompimento, composições que o consagraram como “O Rei da Dor de Cotovelo”.

No ano de 1935, deu baixa do Exército, retornando para Porto Alegre. De volta à capital, empregou-se como bedel na Faculdade de Direito da UFRGS, aposentando-se, em 1947, devido à saúde debilitada. Lupi afirmava que o amor era a causa de seus males….

Durante o Centenário Farroupilha, em 1935, ele participou de um concurso musical, organizado pela Prefeitura. A canção vencedora foi “Triste História”, em parceria com Alcídes Gonçalves (1908-1987). Em 1936, gravou, além desta, a canção “Pergunta aos meus tamancos” da autoria de ambos. A dupla compôs, também, “Castigo” (1953), “Maria Rosa” (1949), “Cadeira Vazia” (1949), “Quem há de dizer” (1948), entre outras composições.

O sucesso chegou, em 1938, com o samba “Se acaso você chegasse”, gravado por Cyro Monteiro (1913-1963), em parceria com Felisberto Martins (1904-1980). No Rio de Janeiro, em 1939, conheceu Francisco Alves (1898-1952), “O Rei da Voz”, que gravou canções compostas por Lupi, como “Nervos de aço” (1947), “Esses Moços” (1948), “Quem há de dizer” (1948) e “Cadeira Vazia” (1950).

As canções de Lupi se tornaram conhecidas, no centro do país, graças também aos marinheiros que frequentavam a boemia na capital gaúcha. Ao desembarcarem, noutros centros, divulgavam o que haviam escutado nos dancings de Porto Alegre.

Abandonado pela carioca Mercedes, ele sofreu outra grande decepção amorosa, inspirando-o a compor “Briga de Amor”, “Minha Ignorância”, “Nunca” e “Vingança.” Nesse ínterim, foi pai da menina Tereza com Juraci de Oliveira, com a qual se casou. Esta, à beira da morte, levou–o a legalizar a união. Os cantores Orlando Silva (1915-1978) e Linda Batista (1919-1988), também, gravaram suas músicas. O primeiro, em 1947, fez sucesso com as canções “Brasa” e “Zé Ponte”; já a segunda, em 1951, interpretou “Vingança”, que se tornou um sucesso absoluto. Em 1949, casou -se com a gaúcha Cerenita Quevedo que o acompanhou até o final de sua vida, sendo mãe de Lupicínio Rodrigues Filho, o Lupinho.

No ano de 1952, ele gravou seu primeiro álbum “Roteiro de um Boêmio”. No ano seguinte, compôs o atual Hino do Grêmio durante uma greve da Cia. Carris. No dia do jogo, Grêmio x Cruzeiro, houve muita dificuldade de acesso ao local, devido à falta de transporte coletivo, donde se justifica o verso presente no hino “Até a pé nós iremos…”. Lupi é homenageado pela família gremista, por meio de um retrato, na Galeria dos Gremistas Imortais, no salão nobre do clube.

Seu pai, Francisco Rodrigues, pertenceu à Liga da Canela Preta, tendo sido rejeitado, como jogador, no quadro do Sport Club Internacional. Este fato fez com que Lupi se desencantasse com o time colorado. O racismo era muito intenso à época… Embora o Internacional (1909) seja conhecido como o Clube do Povo, ele passou a incluir negros somente a partir da década de 20. A elite branca, representada por italianos e alemães, dirigia os principais times, naquela época, e não aceitava jogadores negros. Devido a este preconceito, criou-se, na Ilhota, A Liga da Canela Preta. É neste local , em 1914, no ano da eclosão da 1º Guerra Mundial, que nasceu Lupicínio Rodrigues.

Ao som de uma caixa de fósforos e assoviando, numa mesa de bar, Lupi compôs verdadeiros relicários musicais que atravessaram gerações. Suas composições dissecam as emoções mais profundas da alma. Ele foi o canal de expressão dos que desafiavam a moral vigente e dos que buscavam alívio de suas dores na mesa de um bar. Bastava assoviar e batucar numa caixa de fósforos, para que suas mágoas se transformassem em poesia. Sua música é um mosaico de amores, vinganças, encontros e abandonos. Ele desnudou, como ninguém, a psique humana. O amor foi a bússola que norteou a sua existência…

A partir da canção “Ela disse assim”, em 1959, suas canções se popularizaram, ainda mais, na voz do saudoso José Bispo Clementino dos Santos, o Jamelão (1913-2008), que se tornou um dos seus maiores intérpretes. Ainda, em 1959, Elza Soares gravou o samba “Se acaso você chegasse”.

Em um dos principais jornais que circularam em Porto Alegre, a “Última Hora” (1960-1964), no período de fevereiro de 63 a fevereiro de 64, Lupi escreveu sobre as suas músicas e a vida boêmia na cidade, totalizando 42 crônicas. A coleção deste periódico faz parte do acervo do Museu da Comunicação Social Hipólito José da Costa que é responsável pela guarda, preservação e difusão da história dos meios de comunicação, no Rio Grande do Sul, desde 1974.

Alguns bares e restaurantes foram gerenciados por Lupi, como o Jardim da Saudade, o Clube dos Cozinheiros, o Batelão e o Bar Vingança. Ele costumava dizer que não visava ao lucro, apenas reunir os amigos para confraternizar.

Após um período de ausência nas paradas musicais, devido ao sucesso do rock e da bossa nova, na década de 60, cantores, pertencentes às gerações mais atuais, regravaram as músicas do Rei da Dor de Cotovelo, a exemplo de Elis Regina (Maria Rosa), Zizi Possi (Nunca), Maria Bethânia (Foi Assim), Caetano Veloso (Felicidade), Gal Costa (Cadeira Vazia) Paulinho da Viola (Nervos de Aço), Gilberto Gil (Quem há de dizer) entre outros nomes da nossa MPB. Lupi compôs cerca de 600 composições, tendo gravado aproximadamente 150. Seus biógrafos registram que seu lado compositor sofreu influência de Noel Rosa (1910-1937), enquanto o cantor se espelhou na figura de Mário Reis (1907-1981).

Lupicínio Rodrigues faleceu de insuficiência cardíaca, em 27 de agosto de 1974, e foi sepultado, no Cemitério São Miguel e Almas. Ao som de um de seus maiores sucessos, Se acaso você chegasse, e sob aplauso de uma multidão de fãs, liderada pelo jornalista Paulo Santana, ele nos deixou. As lembranças dos encontros com Lourdes Rodrigues (1938-2014), Ziláh Machado (1928-2011), Alcides Gonçalves (1908-1987), Orlando “Johnson” Silva (1910-1995), entre outros amigos, e as noites de boemia, no Bar Adelaide’s, ficaram na memória de quem compartilhou a sua amizade. “O Rei da Dor de Cotovelo” partiu, aos 59 anos, num dia chuvoso. A Chuva era como as lágrimas de quem passou a existência, buscando o verdadeiro amor….

 


Pesquisador e Coordenador do Setor de Imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa*


 

Bibliografia

CAMPOS, Marcelo. Almanaque do LUPI. Porto Alegre: Editora da Cidade/ Letra & Vida,2014.

GONZALEZ, Demósthenes. Roteiro de um boêmio: vida e obra de Lupicínio Rodrigues

crônicas. Porto Alegre, Edit. Sulina, 1986.

OLIVEIRA, Márcia Ramos de, Lupicínio Rodrigues: a cidade, a música, os amigos.

Dissertação de Mestrado /PPG em História/UFRGS, 1995.-

————-Uma leitura histórica da produção musical de Lupicínio Rodrigues. Tese de Doutorado/PPG em História /UFRGS, 2002.

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